terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Philip Roth

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A casa e os signos

Esta é a casa, aquela porta ali me viu nascer, lembro-me (e todo mundo duvida) de, ao sair do ventre da minha mãe, contemplar nela um raio de sol. Raios de sol e portas ainda não significavam para mim, mas eu sei o que vi e guardei tudo até descobrir os nomes das coisas. Essa casa guardou tantos segredos, tanto quanto todas as outras, suponho.

Hoje, o último membro desta família se despede, minha mãe, e ninguém mais viverá aqui, ninguém mais vigiará o que fomos. Os quadros já tortos na parede, a cristaleira empoeirada e cheia de objetos inúteis...não, ninguém. Eu mesma passarei a chave na porta e nunca mais voltarei.

Logo agora que domino tantos nomes.

...

Leila Silva Terlinchamp

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O mundo de Suelen

Suzi, só de olhar já mete medo nas pessoas, uns olhos estranhos, esgueirados, parece o próprio diabo. Se for preciso, sabe se fazer de boazinha também. Está lá no quarto costurando, cuidadosamente, minhas lingeries, boa que só ela. Minha mãe, mãe mesmo, era uma louca que andava pelas ruas levantando as roupas, se exibindo, essa me pôs no mundo e a dos olhos estranhos me criou e me chamou Suelen. Como passei dos braços caprichosos de uma para os da outra, não sei, só sei que aqui estou. Juro que ela tem olhos de bruxa, um dia lhe disse isso e levei um baita tapa na cara. Devo ter merecido, afinal de contas ela me deu um teto e alguma orientação. Preparou para mim uma festa de quinze anos, vestido novo, sapatos novos, cabeleireiro e fotos. Foi há dois anos, um sonho. Talvez, bruxa mesmo seja essa vida de merda, esse lugar onde eu fui cair ou pode ser que eu seja louca como minha mãe verdadeira. É difícil saber todas as coisas e fico arrependida de pintar esse retrato de Suzi. Mas é que às vezes ela exagera. Não na coisa em si, mas no jeito de jogar as cartas. Está certo, sou meio namoradeira, mas dizer assim na bucha: ‘olha é o seguinte, você anda por aí dando de graça mesmo, agora vai ser assim, você vai cobrar pelos serviços.’ Escondi pra chorar. Podia, pelo menos, ter usado um palavreado menos dolorido. Às vezes penso até que nesses anos ela foi preparando tudo no seu caldeirão mental, colocando as ervas, imaginando, preparando meu corpo. Tanto é que implicou quando comecei a engordar e me mandou para o médico que me encheu de comprimidos até eu perder dez quilos. Aqui estou, esbelta, com longos cabelos negros que ela insiste em mudar para loiro. O passo seguinte é entregar-me para o velho, o Jorge, dele tenho que arrancar dinheiro suficiente para nós duas irmos para o estrangeiro, lá sim, se ganha dinheiro, pelo menos é o que ela pensa e já tem tudo planejado para mim e para ela. Arrancar dinheiro desse velho babão não vai ser muito difícil, faz alguns meses que ele vem me mandando presentes, Suzi se faz de cega, surda e muda, mas planejou cada detalhe, desde o início, a rua onde eu tinha que desfilar na frente dele, os horários que deixava o consultório, tudo. Ela sabe das coisas. Até consulta pagou pra mim. Cardiologista, tive que fingir uma disritmia e inventar um passado cardíaco para a família. Quer dizer, inventei tanto os corações quanto a família já que a única coisa certa é essa mãe louca. Afinal, quem pensa no coração aos dezessete anos? Eu não pensava. De qualquer modo o cérebro do velho está travado, nem imagina que pode ter uma suzi por trás disso.

Melhor destino para mim não há, já decidiu. Deve ser assim mesmo, não acredito em príncipes encantados, encantado é aquele que pagar mais, mas ficava com uma certa vergonha de me arrumar, entrar numa mini-saia e sair de manhã com o único propósito de me exibir por onde ele passava tomando cuidado para que tudo parecesse coincidência. Quem sabe eu não devia tentar ser atriz? Já fiquei meio treinada depois dessa encenação. E como é que pode ter homem estúpido a esse ponto? Decerto que o fundo não presta mesmo, tem aquela cara séria, foto da mulher e dos filhos na mesa do consultório, mas quê, puro enfeite. No meu retorno ele já estava meio atrapalhado com o porta retrato, virando ele para a parede enquanto me mostrava um coração de plástico e explicava as suas baboseiras. Eu não vi nada disso, foi mamãe que observou e falou, pode ser também a imaginação dela, isso sobra lá naquela cachola. O importante é que no final tudo deu certo, como planejado. Outro dia ela disse que cada um nasce para uma coisa e eu nasci pra puta, tenho que ficar satisfeita e erguer as mãos para o céu – para o céu, imagine! – porque tenho um bom corpo e um sorriso convincente, levo jeito. A vida é estranha e cheia de surpresas, no meu caso são tantas que nem perco mais tempo me surpreendendo.

Agora marcou no calendário o tempo que eu tenho para conseguir o dinheiro dos bilhetes, não é muito, mas prefiro assim, não suportaria aquele cheiro de velho por muitos meses.


terça-feira, 25 de novembro de 2008

Ernest Miller Hemingway

domingo, 23 de novembro de 2008

In pace requiescat!

A preparação da mesa durara quase uma hora. É muito tempo, mas foi bem executada, nada fora do lugar, talheres brilhando e milimetricamente dispostos. Eu estava contente com Stephen. Bastava respeitar o seu tempo, todo mundo tem seu tempo, é natural que Stephen tenha o dele. Infelizmente Alice não pensava assim e vivia a reclamar e a sacudir o relógio. Não apreciava nada. Veja este quadro, Alice – disse, tentando chamar sua atenção para algo que não fosse espelho ou relógio. Eu já disse que não vejo nada neste quadro, é horrível, por mim já teríamos trocado isso. Sim, e teríamos colocado mais uma foto dela no lugar, decerto.

Minha devota esposa, todo domingo estava na igreja, primeira fila, cada semana com um vestido novo. O padre não sabia da missa um terço, eu conhecia. Um dia saiu da igreja de olhos inchados, disse que a confissão a fizera chorar. Duvido que de sua boquinha vermelha tenha saído a coleção de chifres com que me presenteou durante o nosso cruzeiro. Não, o padre só ouvia os pecadilhos de moça, ou melhor, da jovem Alice que sofria nas mãos de um marido caprichoso. Eu podia até ver os seus beicinhos tremendo na frente do padreco.

Não suporto esse Stephen, é muito estranho, você devia substituí-lo. Essa era a última da minha Alice, não parava de me encher. Substituir Stephen? Never ever, eu sempre quis um mordomo inglês. Nem inglês ele é, é irlandês. Respondeu a atrevida. Fulminei por dentro, mas por fora parecia um mestre zen. Ele tem um ar sorumbático. Sorumbático? Gargalhei. Minha querida agora anda lendo dicionários ou está aperfeiçoando com o padreco? Saiu batendo os saltos na madeira do assoalho e fingindo indignação. Na semana passada tinha me chamado de mentiroso por conta do quadro que ela quer substituir, eu disse que ele pertencia à minha família há muitas gerações, que tinha vindo num navio, quando minha avó decidira se aventurar por essas terras. Que exagero, disse ela, você vive exagerando essas histórias de família. Eu respondi, Alice, eu já te disse que não sou mitômano. Os olhos rebocados se arregalaram. Eu tinha me esquecido com quem estava falando. Não estou exagerando, Alice, não é mentira, esse quadro é importante para a família, mas acho que é muito difícil fazer você entender isso.

Pedi a Stephen que trouxesse meu casaco, eu ia sair. Stephen, terminou a leitura de The Cask of Amontillado? Perguntei enquanto me vestia. Sim, senhor – disse Stephen. Entendeu tudo? Preparou a adega? Entendi sim, senhor. Sempre gostei de Poe. Sim, Poe é excelente leitura. Muito instrutivo. Então eu já vou, Stephen, será hoje, não perca tempo.

De manhã meu café estava servido do mesmo jeito de sempre. Mesa posta para uma pessoa.

Bom dia, Stephen? Correu tudo como previsto? In pace requiescat! Respondeu. Eu vou sair e vou organizar a viagem, vamos passar uns meses na Europa. Antes vou verificar a parede da adega. Não precisa, Sir. Ficou perfeito, eu lhe garanto. Ninguém saberá que existe outro cômodo depois dela. Respondeu, seguro, Stephen. Precisamos de umas férias, Stephen. Disse-lhe e ele respondeu, sem se mover, yes, Sir, com efeito, preciso mesmo rever os verdes campos da Irlanda.

Leila S.

domingo, 2 de novembro de 2008

Pássaro rebelde

É certo, l’amour est un oiseau rebelle, eu entendo mas, por mais rebelde que seja essa pôrra desse pássaro, isso não se justifica. Ele a emprenhou quinze, quinze não, dezesseis vezes. Dezesseis sim, tem sentido isso? Você só sabe de quatorze porque dois morreram, já nem sei como. Quatorze! Sete? Sete filhos tanta gente tem, não é mesmo? Quatorze, sete homens, sete mulheres! Parece conta feita. Então era assim, o bonitão desaparecia por uns tempos, vinha e bimba, um filho, sumia por mais um tempo, voltava e a mãe lá firme, com o barrigão firme. Lá vinha mais um para viver a pobreza escolhida pela minha mãe. Foi por conta desse amor aí, este oiseau rebelle?Ah, o cacete! O bonitão é meu pai, claro.

Um dia, quando eu era moleque, a professora mandou a gente ler um tal de Éramos seis e veio perguntar, justo pra mim “Eduardo, o que foi que você achou do livro?” “Não achei nada, professora.” Respondi. “Como assim, nada? Você leu o livro?” “Eu li, professora, mas não vi graça na choradeira porque, se a senhora quiser saber mesmo, lá em casa somos Quatorze.” Pra bom entendedor um pingo é letra, a professora não me encheu mais o saco, viu que precisa mais do que seis pra me impressionar….mas bom, felizmente isso já vai longe. Sobrevivi, agora, passeando meus olhos pelas estantes da biblioteca vejo o tal livro e aqueles dias são revividos. Foi isso o que aconteceu, com Proust era a Madeleine.

sábado, 4 de outubro de 2008

Vladimir Nabokov
(1899-1977)

Profano


Profano

Sofia estranhou aquela consistência. Meteu os dedos na massa e levou-os à boca só para constatar que o gosto também fugia ao comum. O comum era não ter gosto. Entretanto seguira à risca os ensinamentos da mãe.

Padre Rafael apareceu na porta no momento em que ela lambia os dedos. De bermudão. Sofia enrubeceu. ‘Algo errado?’ Perguntou ele se aproximando. Sem esperar resposta, tomou a mão da moça, enfiou-a de novo na massa, lambeu cada um dos seus dedinhos e sentiu o estremecimento do seu corpo. ‘Não se preocupe, filha, estas hóstias ainda não estavam consagradas.’

...

imagem: Henri Matisse

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Os trilhos

Quando cheguei à rodoviária de B.H. lá estava ele me esperando e fumando um cigarro. Ansioso, talvez. Aplicou-me um beijo na boca, pegou a minha mala e conduziu-me até o fusca emprestado. Esperava que eu não estivesse cansada, disse, pois os amigos - que eu ainda não conhecia - estavam esperando no bar. Eu tinha viajado de ônibus por mais de sete horas mas, de fato, não me sentia cansada. Não se cansa fácil aos dezenove anos.

Sempre detestei o gosto da cerveja porém, na época, gostava das conversas de bar e tolerava as chacotas dirigidas aos meus sucos de fruta. Lá estava um tipo meio hippie que estudava e tentava propagar as belezas do Esperanto. Escutava interessada, me interessava por tudo e por todos.

Tarde da noite fomos para casa, ou melhor, para o apartamento da mãe dele. Era lá que ele estava morando. Ao chegarmos ele colocou a mala sobre o tapete limpinho da sala e beijou-me com muito entusiasmo e em muitos lugares. Depois mostrou-me o quarto que sua mãe arranjara para mim e foi dormir no seu, não sem antes beijar-me mais uma vez e dizer-me que era importante que eu colocasse ordem na minha vida, sexual inclusive, que um dia ele seria um advogado bem sucedido e poderíamos ir juntos recomeçar a vida em algum lugar pouco provável, Tocantins, por exemplo. Para isso eu deveria resolver, eu deveria vir vê-lo com mais frequência, eu deveria evitar certas companhias, eu deveria……Boa noite!

No dia seguinte visitamos livrarias, bares, restaurantes, andamos por vielas e Belo Horizonte era fresca nesses dias sem congresso, sem horas, sem professores, sem palestras chatas…..Pela primeira vez eu estava livre em B.H e não ia permitir que ele acabasse com meu sossego me atazanando com essa novela de advogado bem sucedido, Tocantins e outras barbaridades. Bebi cappuccinos, sorri para os bêbados, fui a feiras e fugi das conversas sérias.

No Domingo à noite, intacta, entrei no ônibus e ele ainda me preveniu mais uma vez, eu deveria pensar bem e achar os trilhos, lindas crianças enfeitariam a nossa vida, ele advogado e eu, professora, por que não? Que eu pensasse bem…..Da janela o vi abanando a mão num gesto esperançoso. Algum tempo depois telefonou e disse que assim não dava pé, não íamos chegar a lugar nenhum. Eu era uma sem-rumo, não sabia o que queria. Argumentei, por orgulho e porque não estava acostumada a levar pés na bunda. Não, ele não queria tentar mais por que eu não sabia o que estava tentando. Pronto, era assim, que eu não me perdesse definitivamente na minha confusão. Passar bem.

Passei.
...
Leila S. Terlinchamp
Charlotte Brontë
1816-1855
...

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O quadro


[Obs:História baseada no conto ‘La Fresque’ retirado do livro “Chroniques de l’étrange” de Pu Songling (1640 – 1715), autor chinês que já foi traduzido para todas as línguas latinas exceto o português. Eu estou trabalhando na tradução de alguns dos seus contos (não do chinês, infelizmente, mas do francês e/ou inglês)em conjunto com uma pequena editora.]
...

O quadro

Virgílio, originário de uma cidade do interior, encontrava-se na capital em companhia de seu amigo Pietro. Um dia caminhavam os dois sem destino certo por ruas e travessas quando encontraram um pequeno museu. O lugar estaria completamente deserto não fosse a presença de um velho empregado que cochilava quando eles entraram. Mal os viu, o homem compôs respeitosamente as roupas e, cumprimentando os dois visitantes, ofereceu-se para lhes mostrar o que considerava seu pequeno refúgio.
A sala principal abrigava máscaras e estátuas de personalidades ligadas à literatura, as paredes laterais eram cobertas por quadros pintados com tal delicadeza que se podia tomar por verdadeiras as figuras humanas ali representadas. Em um dos quadros via-se Ariadne sorridente, a palma da mão levantada, rodeada de outras mulheres de beleza quase comparável à dela. Sua figura, porém, se destacava e comoveu o coração de Virgílio. O olhar de Ariadne parecia um convite. Tanto concentrou-se na contemplação do quadro que perdeu o controle de si, seus pensamentos tornaram-se tão abstratos que entrou numa espécie de transe, sentiu o corpo tomar uma nova consistência, como se flutuasse num estranho nevoeiro - Subitamente estava dentro do quadro.
Assustado, Virgílio compreendeu que se encontrava em outro mundo. Ainda abestalhado sentiu que o puxavam furtivamente pela manga, virou-se: Ali estava Ariadne a lhe sorrir. Ela afastou-se repentinamente e ele a seguiu de perto pelas galerias sinuosas até a porta de um quarto, uma vez ali, ele hesitou, não ousava entrar. A moça voltou-se e acenou de forma tão convidativa que Virgílio não pode resistir. Percebendo que não havia ninguém no quarto tomou-a imediatamente nos braços sem que ela oferecesse resistência. Horas mais tarde, satisfeita , ela se levantou, fechou as cortinas e, depois de avisar que ele não deveria emitir sequer um ruido, saiu prometendo que voltaria quando a noite caísse. E assim foi, voltou nessa noite, na noite seguinte e outras até que numa dessas vezes ouviu-se lá fora, no meio de vozes exaltadas, passos fortes juntamente com um tilintar de correntes. Ariadne levantou-se apavorada e espreitou pela janela: era um dos guardas do palácio. À sua volta se encontravam todas as outras moças. “Onde está Ariadne?", perguntou o homem. "Estava indisposta, está descansando", respondeu uma em nome de todas tentando acobertar a moça que elas tanto amavam e a quem tanto apreciavam escutar. "Se alguma de vós estiver escondendo algo importante será pior para todas. Não criem problemas dos quais ninguém vos poderá defender". O oficial, com o seu olhar de águia, parecia prestes a dar busca no esconderijo. Ariadne só teve tempo de dizer: "Rápido, esconde-te debaixo da cama". Quanto a ela, abriu uma porta secreta na parede e desapareceu num segundo. Virgílio mal se atrevia a respirar. Lá fora, o barulho das vozes ia esmorecendo. Apesar do medo e do desconforto não tinha outro remédio senão esperar, muito quieto, pelo regresso da jovem pois, tão toldado se encontrava seu espírito, que já não sabia de onde tinha vindo...

Ao aperceber-se do súbito desaparecimento de seu amigo, Pietro, perplexo, perguntou ao velho o que se passara. "Foi ouvir as histórias de Ariadne", respondeu com um sorriso irônico nos lábios. "Onde?" "Não foi longe", atalhou o outro dirigindo-se ao quadro. Chegando-se à pintura bateu com um dedo e perguntou: "Porque demoras tanto?" Imediatamente surgiu no quadro a imagem de Virgílio, a face descomposta pelas emoções, a cabeça ligeiramente inclinada como se estivesse a ouvir alguma coisa. "Há muito tempo teu companheiro te espera”, prosseguiu o homem. Nesse momento ele caíu do quadro e ficou prostrado no chão, os olhos esbugalhados e as pernas a tremer. Assustadíssimo, Pietro perguntou-lhe o que acontecera. O amigo não sabia o que responder; na verdade, estava debaixo da cama quando ouvira um enorme fragor, como se mil homens tocassem a um só tempo um tambor gigantesco. Apavorado, saíra a correr da câmara.

Os dois amigos voltaram-se para o quadro; a jovem continuava ali diante das outras, mas sua mão, agora, segurava o véu. Surpreso, Virgílio voltou-se para o velho e perguntou-lhe a razão daquela mudança. "A ilusão nasce do espírito humano. Que outra explicação poderia lhes oferecer esse humilde servidor?"

Virgílio sentiu-se extremamente abatido, Pietro estava confuso. Ambos se levantaram e desceram as escadas que conduziam à saída.

Leila S. Terlinchamp

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Escultor

Escultor, feita por mim em algum lugar perdido de Formosa (Taiwan)

domingo, 24 de agosto de 2008

Mosaico de horas

Eu e essa estrada, faz anos que é assim, tantos que ela já é quase uma pessoa. Uma pessoa, é isso, a gente vai rodando... rodando.... nessa solidão e começa a racionar besteiras, uma estrada vira uma pessoa, já se ouviu de tudo, quer dizer, na verdade ninguém ouviu porque estou matutando sozinho. Mas, se tivesse alguém aqui eu ia mostrar o tanto que conheço bem esse caminho, daqui a uns quinze ou vinte minutos vou passar por aquela árvore grande pendendo pra esquerda, uma de galhos engraçados, parece que quer abraçar, vamos ver, vou marcar no relógio, tivesse alguém aqui ia ver como estou certo. Bom, ia ver ia ver e de quê isso ia servir? De nada. Uma inutilidade saber que em tal lugar dessa estrada tem isso ou aquilo. Algumas vezes necessitamos também dessas coisinhas inúteis, essa que é a verdade, ajuda ao menos a pontuar minha solidão. É que tenho que manter a cabeça ocupada, essa vida de estrada é muito das esquisitas se a gente analisar, estrada, estrada e mais estrada, ninguém imagina o que é isso, nem eu imaginava que um dia ia ser assim, que a solidão pudesse ser tão vasta, que ia ter que treinar a minha própria cabeça para não ficar doido, vou pensando numas coisas e tentando não pensar noutras, às vezes pulo sem mais nem menos de um assunto pra outro, mudo completamente de rumo, de propósito. Lá está a tal da árvore, vamos ver, dezessete minutos contados, nem quinze, nem vinte, mas dezessete que está no meio. Olha lá, dá até vontade de abanar a mão pra ela. Veja o que a solidão faz com um homem, estrada vira gente, árvore vira gente...Um dia escutei no rádio uma história estranha, era sobre as sereias, essas também foram uma invenção da solidão do homem. Ficavam os marinheiros a marear por longos meses, anos, quem sabe, naquela solidão absoluta, quer dizer, só não era mais absoluta que a minha nesse caminhão porque lá eles tinham outros homens pra conversar, mas sempre os mesmos...não sei, em todo caso, mulher é que não viam, daí a imaginação desses coitados transformou um peixe - um peixe que consegue sair da água por uns instantes – na mais bela criatura fêmea que havia, fêmea, mas não mulher, ou mulher só pela metade. Solidão é isso, invenção. Estrada, minha estrada, até quando seremos nós dois?

De noite leio umas pagininhas do bang-bang, escuto as notícias no rádio e durmo, umas vezes o sono vem rápido, outras demora, quando demora é o diabo, esticar essa solidão diurna é pagar os pecados que a gente nem tem tempo de cometer. Na manhã seguinte, a estrada está lá esperando a minha marca, é quase infinitamente assim, um dia não há de ser mais porque até o que parece infinito tem que ter um fim. É.

...

imagem:Ichi en so, shingai Tanaka

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Les escaliers du Montmartre, Paris.
Brassai

Óleo sobre tela

....e como era aquele tempo em que as pessoas não tinham fotos amareladas para ver ? aquela chinesa ali, tão grávida, que parou para descansar [o marido americano segura a bolsa enquanto isso. bolsa de mulher] tem em casa uma foto antiga da mãe na China. da sua boca sairá uma filha que ela quererá perfeita e, quem sabe, cristã. mas aquele outro casal que passa, ele chinês, ela chinesa, observa sem pudor aquela que ali descansa o seu ventre já quase maduro e o marido que segura ternamente a bolsa feminina. A bolsa outra, dia desses, rebentará e uma menina muito linda e mista verá a luz. mas o olhar do outro casal lançou uma sombra na boca da grávida. a boca mensageira, corrosiva ou libertária, a boca que recriará uma avó chinesa, uma língua chinesa e os parques da China tão mais vastos e verdes que este americano e plástico. a graça imperfeita da China parecerá tão distante e a foto da avó desdentada e camponesa será uma irrealidade. a mãe entoará berceuses em chinês. deve existir berceuses em chinês. sim.

15/08/2004

domingo, 27 de julho de 2008

The artist's garden at Giverny, Claude Monet
...

Imprudência

Separei, sempre, o joio do trigo e, muitas vezes, fiquei com o joio. Não foi a sorte ou o azar, foi a imprudência. Eu podia ter escolhido o Luís, mas não, fiquei com o Lazinho. Imprudência! Está vendo minha cara quebrada? Significa que fiquei com o joio, entendeu, doutor? Uma lástima. Claro que não foi a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira. Olha também aqui na minha coxa, viu? Estragar umas coxas dessas, doutor? Modéstia à parte...Um dia o desgraçado quase me arrebentou a cabeça, está aí escrito, dei queixa. A imprudência me fez voltar. Daí, doutor, respondendo à sua pergunta, foram sete facadas de raiva, de dor, de medo. Imprudência pura. Devia ter dado um tiro.

O bife

Natal é sempre a mesma merda, entra ano sai ano, tudo igual. E foi num natal, justamente, que eu abocanhei aquele bife do meu pai. Antes, isso era regalia dele, para nós, só a gordura que sobrava e mamãe misturava numas batatinhas.

Lá se vão tantos anos, mas ainda lembro da cena: meu pai sentado com o prato na mão, preparando para meter os dentes no bife, nós, as crianças, brincando pelo chão e mamãe lavando vasilhas, foi então que o homem entrou, da porta mesmo, sem dizer bom dia, deu os tiros no meu pai que mal teve tempo de se assustar. Eu só tinha uma idéia na cabeça, o bife. Corri, peguei aquele pedaço suculento e comi num piscar de olhos. Os outros choravam apavorados. Só dei por mim depois de ter terminado de engolir. Ainda vi mamãe enxugar as mãos na roupa e sair pelo portão, tomar a rua e caminhar, caminhar, sem olhar para trás, nunca mais voltou. Fomos todos para o orfanato e agora, velha, estou aqui nessa casa de velhos. Hoje me aparece esse aí distribuindo balinhas, rindo e soltando uns ho ho ho fingidos. Quem precisa dele e desses bombons nessa velhice besta?

O que eu queria mesmo era poder comer de novo um bife igual àquele.

Lolita - Capa

domingo, 13 de julho de 2008


Xantipa

Aqui dorme-se bem, o colchão é macio, os lençóis alvos e perfumados. Sim, aqui dorme-se muito bem, não é como no meu pequeno e imundo barraco. Gostei dessa ilha tranqüila e silenciosa, sobretudo agora. Vou partir contrariada, com o coração aos pedaços, diria se fosse um pouco mais dramática. É duro abandonar tanto conforto, mas já é tempo. Amanhã pego o barco e vou por aí, deixo todo mundo aqui que eu estou cansada dessa gente. Obrigada pela cama, pela boa comida, pelos vinhos, pela praia, pelo sol, por tudo….Vou-me. Depois de tantos anos, digo-lhes, finalmente, adeus!


Dona Adélia Campos Guimarães, minha patroa, nem responde, os outros também não. Ninguém mais responde e nem ordena: ‘Xantipa vá buscar isso, por favor.’ ‘Xantipa, nós vamos jogar tênis, prepare um lanche para daqui a duas horas, sim?’ ‘Xantipa, vamos jantar às oito horas, prepare os camarões.’


De manhã lhes sirvo café quente, pães, sucos, limpo a mesa, o chão, troco os lençóis, lavo as toalhas, muitas toalhas que devem estar sempre limpas e cheirosas. Mas tudo isso é pretérito imperfeito, falo no presente por descuido e costume, agora estão todos lá fora, com a boca já cheia de formigas, outros estão ainda na varanda onde lhes servi o camarão bem temperado. Camarão é uma comida estranha e facilmente perecível, eu mesma detesto camarões, sou alérgica, mas eles gostam, digo, gostavam. O Valter não deve ter comido bastante e me deu trabalho. Droga! Esse imbecil bebia tanto que não se importava em comer. Eu devia ter temperado as bebidas também. Da porta vi quando os outros começaram a sentir tonturas, alguns não tiveram a decência de procurar um canto escondido para vomitar e, vendo aquele espetáculo, vomitei também. Não suporto ver gente vomitando, tenho o estômago fraco, ele dá umas reviradas e, como num ato de solidariedade, vomito junto. Valter, que já estava bêbado, não entendia direito aquelas cenas. Alguns correram para o mar procurando, decerto, se refrescar, então, percebendo que não se tratava de uma brincadeira, o beberrão quis entrar para telefonar, eu empurrei a porta e me tranquei aqui dentro. Ele deu murros, pontapés e depois tentou as outras entradas, mas não tinha muita força, desistiu e tentou chegar ao barco, logo o alcancei e dei-lhe uma cacetada na cabeça. Merda, com essa eu não contava, mas tive que fazer, com o barco ele podia, rapidamente, avisar um dos vizinhos. Foi chato isso, pois uma coisa é envenenar comidas, outra é sair distribuindo cacetadas em cabeça de bêbado. Para o envenamento eu tinha me preparado com muita antecedência, tinha estudado e, além disso, era colocar o veneno e esperar agir, já as cacetadas foram todas improvisadas, uma violência. Foi chato, muito chato, mas está feito.


Agora é apagar o que puder dos meus traços, juntar as minhas poucas roupas e desaparecer. Vou amanhã bem cedo antes que os curiosos apareçam por aqui, o telefone tem tocado cada vez mais, os recados preocupados se acumulam na secretária eletrônica. É tempo.


Bruxelas 11/10/2000

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust
1871 - 1922