domingo, 23 de novembro de 2008

In pace requiescat!

A preparação da mesa durara quase uma hora. É muito tempo, mas foi bem executada, nada fora do lugar, talheres brilhando e milimetricamente dispostos. Eu estava contente com Stephen. Bastava respeitar o seu tempo, todo mundo tem seu tempo, é natural que Stephen tenha o dele. Infelizmente Alice não pensava assim e vivia a reclamar e a sacudir o relógio. Não apreciava nada. Veja este quadro, Alice – disse, tentando chamar sua atenção para algo que não fosse espelho ou relógio. Eu já disse que não vejo nada neste quadro, é horrível, por mim já teríamos trocado isso. Sim, e teríamos colocado mais uma foto dela no lugar, decerto.

Minha devota esposa, todo domingo estava na igreja, primeira fila, cada semana com um vestido novo. O padre não sabia da missa um terço, eu conhecia. Um dia saiu da igreja de olhos inchados, disse que a confissão a fizera chorar. Duvido que de sua boquinha vermelha tenha saído a coleção de chifres com que me presenteou durante o nosso cruzeiro. Não, o padre só ouvia os pecadilhos de moça, ou melhor, da jovem Alice que sofria nas mãos de um marido caprichoso. Eu podia até ver os seus beicinhos tremendo na frente do padreco.

Não suporto esse Stephen, é muito estranho, você devia substituí-lo. Essa era a última da minha Alice, não parava de me encher. Substituir Stephen? Never ever, eu sempre quis um mordomo inglês. Nem inglês ele é, é irlandês. Respondeu a atrevida. Fulminei por dentro, mas por fora parecia um mestre zen. Ele tem um ar sorumbático. Sorumbático? Gargalhei. Minha querida agora anda lendo dicionários ou está aperfeiçoando com o padreco? Saiu batendo os saltos na madeira do assoalho e fingindo indignação. Na semana passada tinha me chamado de mentiroso por conta do quadro que ela quer substituir, eu disse que ele pertencia à minha família há muitas gerações, que tinha vindo num navio, quando minha avó decidira se aventurar por essas terras. Que exagero, disse ela, você vive exagerando essas histórias de família. Eu respondi, Alice, eu já te disse que não sou mitômano. Os olhos rebocados se arregalaram. Eu tinha me esquecido com quem estava falando. Não estou exagerando, Alice, não é mentira, esse quadro é importante para a família, mas acho que é muito difícil fazer você entender isso.

Pedi a Stephen que trouxesse meu casaco, eu ia sair. Stephen, terminou a leitura de The Cask of Amontillado? Perguntei enquanto me vestia. Sim, senhor – disse Stephen. Entendeu tudo? Preparou a adega? Entendi sim, senhor. Sempre gostei de Poe. Sim, Poe é excelente leitura. Muito instrutivo. Então eu já vou, Stephen, será hoje, não perca tempo.

De manhã meu café estava servido do mesmo jeito de sempre. Mesa posta para uma pessoa.

Bom dia, Stephen? Correu tudo como previsto? In pace requiescat! Respondeu. Eu vou sair e vou organizar a viagem, vamos passar uns meses na Europa. Antes vou verificar a parede da adega. Não precisa, Sir. Ficou perfeito, eu lhe garanto. Ninguém saberá que existe outro cômodo depois dela. Respondeu, seguro, Stephen. Precisamos de umas férias, Stephen. Disse-lhe e ele respondeu, sem se mover, yes, Sir, com efeito, preciso mesmo rever os verdes campos da Irlanda.

Leila S.