sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O mundo de Suelen

Suzi, só de olhar já mete medo nas pessoas, uns olhos estranhos, esgueirados, parece o próprio diabo. Se for preciso, sabe se fazer de boazinha também. Está lá no quarto costurando, cuidadosamente, minhas lingeries, boa que só ela. Minha mãe, mãe mesmo, era uma louca que andava pelas ruas levantando as roupas, se exibindo, essa me pôs no mundo e a dos olhos estranhos me criou e me chamou Suelen. Como passei dos braços caprichosos de uma para os da outra, não sei, só sei que aqui estou. Juro que ela tem olhos de bruxa, um dia lhe disse isso e levei um baita tapa na cara. Devo ter merecido, afinal de contas ela me deu um teto e alguma orientação. Preparou para mim uma festa de quinze anos, vestido novo, sapatos novos, cabeleireiro e fotos. Foi há dois anos, um sonho. Talvez, bruxa mesmo seja essa vida de merda, esse lugar onde eu fui cair ou pode ser que eu seja louca como minha mãe verdadeira. É difícil saber todas as coisas e fico arrependida de pintar esse retrato de Suzi. Mas é que às vezes ela exagera. Não na coisa em si, mas no jeito de jogar as cartas. Está certo, sou meio namoradeira, mas dizer assim na bucha: ‘olha é o seguinte, você anda por aí dando de graça mesmo, agora vai ser assim, você vai cobrar pelos serviços.’ Escondi pra chorar. Podia, pelo menos, ter usado um palavreado menos dolorido. Às vezes penso até que nesses anos ela foi preparando tudo no seu caldeirão mental, colocando as ervas, imaginando, preparando meu corpo. Tanto é que implicou quando comecei a engordar e me mandou para o médico que me encheu de comprimidos até eu perder dez quilos. Aqui estou, esbelta, com longos cabelos negros que ela insiste em mudar para loiro. O passo seguinte é entregar-me para o velho, o Jorge, dele tenho que arrancar dinheiro suficiente para nós duas irmos para o estrangeiro, lá sim, se ganha dinheiro, pelo menos é o que ela pensa e já tem tudo planejado para mim e para ela. Arrancar dinheiro desse velho babão não vai ser muito difícil, faz alguns meses que ele vem me mandando presentes, Suzi se faz de cega, surda e muda, mas planejou cada detalhe, desde o início, a rua onde eu tinha que desfilar na frente dele, os horários que deixava o consultório, tudo. Ela sabe das coisas. Até consulta pagou pra mim. Cardiologista, tive que fingir uma disritmia e inventar um passado cardíaco para a família. Quer dizer, inventei tanto os corações quanto a família já que a única coisa certa é essa mãe louca. Afinal, quem pensa no coração aos dezessete anos? Eu não pensava. De qualquer modo o cérebro do velho está travado, nem imagina que pode ter uma suzi por trás disso.

Melhor destino para mim não há, já decidiu. Deve ser assim mesmo, não acredito em príncipes encantados, encantado é aquele que pagar mais, mas ficava com uma certa vergonha de me arrumar, entrar numa mini-saia e sair de manhã com o único propósito de me exibir por onde ele passava tomando cuidado para que tudo parecesse coincidência. Quem sabe eu não devia tentar ser atriz? Já fiquei meio treinada depois dessa encenação. E como é que pode ter homem estúpido a esse ponto? Decerto que o fundo não presta mesmo, tem aquela cara séria, foto da mulher e dos filhos na mesa do consultório, mas quê, puro enfeite. No meu retorno ele já estava meio atrapalhado com o porta retrato, virando ele para a parede enquanto me mostrava um coração de plástico e explicava as suas baboseiras. Eu não vi nada disso, foi mamãe que observou e falou, pode ser também a imaginação dela, isso sobra lá naquela cachola. O importante é que no final tudo deu certo, como planejado. Outro dia ela disse que cada um nasce para uma coisa e eu nasci pra puta, tenho que ficar satisfeita e erguer as mãos para o céu – para o céu, imagine! – porque tenho um bom corpo e um sorriso convincente, levo jeito. A vida é estranha e cheia de surpresas, no meu caso são tantas que nem perco mais tempo me surpreendendo.

Agora marcou no calendário o tempo que eu tenho para conseguir o dinheiro dos bilhetes, não é muito, mas prefiro assim, não suportaria aquele cheiro de velho por muitos meses.


terça-feira, 25 de novembro de 2008

Ernest Miller Hemingway

domingo, 23 de novembro de 2008

In pace requiescat!

A preparação da mesa durara quase uma hora. É muito tempo, mas foi bem executada, nada fora do lugar, talheres brilhando e milimetricamente dispostos. Eu estava contente com Stephen. Bastava respeitar o seu tempo, todo mundo tem seu tempo, é natural que Stephen tenha o dele. Infelizmente Alice não pensava assim e vivia a reclamar e a sacudir o relógio. Não apreciava nada. Veja este quadro, Alice – disse, tentando chamar sua atenção para algo que não fosse espelho ou relógio. Eu já disse que não vejo nada neste quadro, é horrível, por mim já teríamos trocado isso. Sim, e teríamos colocado mais uma foto dela no lugar, decerto.

Minha devota esposa, todo domingo estava na igreja, primeira fila, cada semana com um vestido novo. O padre não sabia da missa um terço, eu conhecia. Um dia saiu da igreja de olhos inchados, disse que a confissão a fizera chorar. Duvido que de sua boquinha vermelha tenha saído a coleção de chifres com que me presenteou durante o nosso cruzeiro. Não, o padre só ouvia os pecadilhos de moça, ou melhor, da jovem Alice que sofria nas mãos de um marido caprichoso. Eu podia até ver os seus beicinhos tremendo na frente do padreco.

Não suporto esse Stephen, é muito estranho, você devia substituí-lo. Essa era a última da minha Alice, não parava de me encher. Substituir Stephen? Never ever, eu sempre quis um mordomo inglês. Nem inglês ele é, é irlandês. Respondeu a atrevida. Fulminei por dentro, mas por fora parecia um mestre zen. Ele tem um ar sorumbático. Sorumbático? Gargalhei. Minha querida agora anda lendo dicionários ou está aperfeiçoando com o padreco? Saiu batendo os saltos na madeira do assoalho e fingindo indignação. Na semana passada tinha me chamado de mentiroso por conta do quadro que ela quer substituir, eu disse que ele pertencia à minha família há muitas gerações, que tinha vindo num navio, quando minha avó decidira se aventurar por essas terras. Que exagero, disse ela, você vive exagerando essas histórias de família. Eu respondi, Alice, eu já te disse que não sou mitômano. Os olhos rebocados se arregalaram. Eu tinha me esquecido com quem estava falando. Não estou exagerando, Alice, não é mentira, esse quadro é importante para a família, mas acho que é muito difícil fazer você entender isso.

Pedi a Stephen que trouxesse meu casaco, eu ia sair. Stephen, terminou a leitura de The Cask of Amontillado? Perguntei enquanto me vestia. Sim, senhor – disse Stephen. Entendeu tudo? Preparou a adega? Entendi sim, senhor. Sempre gostei de Poe. Sim, Poe é excelente leitura. Muito instrutivo. Então eu já vou, Stephen, será hoje, não perca tempo.

De manhã meu café estava servido do mesmo jeito de sempre. Mesa posta para uma pessoa.

Bom dia, Stephen? Correu tudo como previsto? In pace requiescat! Respondeu. Eu vou sair e vou organizar a viagem, vamos passar uns meses na Europa. Antes vou verificar a parede da adega. Não precisa, Sir. Ficou perfeito, eu lhe garanto. Ninguém saberá que existe outro cômodo depois dela. Respondeu, seguro, Stephen. Precisamos de umas férias, Stephen. Disse-lhe e ele respondeu, sem se mover, yes, Sir, com efeito, preciso mesmo rever os verdes campos da Irlanda.

Leila S.

domingo, 2 de novembro de 2008

Pássaro rebelde

É certo, l’amour est un oiseau rebelle, eu entendo mas, por mais rebelde que seja essa pôrra desse pássaro, isso não se justifica. Ele a emprenhou quinze, quinze não, dezesseis vezes. Dezesseis sim, tem sentido isso? Você só sabe de quatorze porque dois morreram, já nem sei como. Quatorze! Sete? Sete filhos tanta gente tem, não é mesmo? Quatorze, sete homens, sete mulheres! Parece conta feita. Então era assim, o bonitão desaparecia por uns tempos, vinha e bimba, um filho, sumia por mais um tempo, voltava e a mãe lá firme, com o barrigão firme. Lá vinha mais um para viver a pobreza escolhida pela minha mãe. Foi por conta desse amor aí, este oiseau rebelle?Ah, o cacete! O bonitão é meu pai, claro.

Um dia, quando eu era moleque, a professora mandou a gente ler um tal de Éramos seis e veio perguntar, justo pra mim “Eduardo, o que foi que você achou do livro?” “Não achei nada, professora.” Respondi. “Como assim, nada? Você leu o livro?” “Eu li, professora, mas não vi graça na choradeira porque, se a senhora quiser saber mesmo, lá em casa somos Quatorze.” Pra bom entendedor um pingo é letra, a professora não me encheu mais o saco, viu que precisa mais do que seis pra me impressionar….mas bom, felizmente isso já vai longe. Sobrevivi, agora, passeando meus olhos pelas estantes da biblioteca vejo o tal livro e aqueles dias são revividos. Foi isso o que aconteceu, com Proust era a Madeleine.

sábado, 4 de outubro de 2008

Vladimir Nabokov
(1899-1977)

Profano


Profano

Sofia estranhou aquela consistência. Meteu os dedos na massa e levou-os à boca só para constatar que o gosto também fugia ao comum. O comum era não ter gosto. Entretanto seguira à risca os ensinamentos da mãe.

Padre Rafael apareceu na porta no momento em que ela lambia os dedos. De bermudão. Sofia enrubeceu. ‘Algo errado?’ Perguntou ele se aproximando. Sem esperar resposta, tomou a mão da moça, enfiou-a de novo na massa, lambeu cada um dos seus dedinhos e sentiu o estremecimento do seu corpo. ‘Não se preocupe, filha, estas hóstias ainda não estavam consagradas.’

...

imagem: Henri Matisse

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Os trilhos

Quando cheguei à rodoviária de B.H. lá estava ele me esperando e fumando um cigarro. Ansioso, talvez. Aplicou-me um beijo na boca, pegou a minha mala e conduziu-me até o fusca emprestado. Esperava que eu não estivesse cansada, disse, pois os amigos - que eu ainda não conhecia - estavam esperando no bar. Eu tinha viajado de ônibus por mais de sete horas mas, de fato, não me sentia cansada. Não se cansa fácil aos dezenove anos.

Sempre detestei o gosto da cerveja porém, na época, gostava das conversas de bar e tolerava as chacotas dirigidas aos meus sucos de fruta. Lá estava um tipo meio hippie que estudava e tentava propagar as belezas do Esperanto. Escutava interessada, me interessava por tudo e por todos.

Tarde da noite fomos para casa, ou melhor, para o apartamento da mãe dele. Era lá que ele estava morando. Ao chegarmos ele colocou a mala sobre o tapete limpinho da sala e beijou-me com muito entusiasmo e em muitos lugares. Depois mostrou-me o quarto que sua mãe arranjara para mim e foi dormir no seu, não sem antes beijar-me mais uma vez e dizer-me que era importante que eu colocasse ordem na minha vida, sexual inclusive, que um dia ele seria um advogado bem sucedido e poderíamos ir juntos recomeçar a vida em algum lugar pouco provável, Tocantins, por exemplo. Para isso eu deveria resolver, eu deveria vir vê-lo com mais frequência, eu deveria evitar certas companhias, eu deveria……Boa noite!

No dia seguinte visitamos livrarias, bares, restaurantes, andamos por vielas e Belo Horizonte era fresca nesses dias sem congresso, sem horas, sem professores, sem palestras chatas…..Pela primeira vez eu estava livre em B.H e não ia permitir que ele acabasse com meu sossego me atazanando com essa novela de advogado bem sucedido, Tocantins e outras barbaridades. Bebi cappuccinos, sorri para os bêbados, fui a feiras e fugi das conversas sérias.

No Domingo à noite, intacta, entrei no ônibus e ele ainda me preveniu mais uma vez, eu deveria pensar bem e achar os trilhos, lindas crianças enfeitariam a nossa vida, ele advogado e eu, professora, por que não? Que eu pensasse bem…..Da janela o vi abanando a mão num gesto esperançoso. Algum tempo depois telefonou e disse que assim não dava pé, não íamos chegar a lugar nenhum. Eu era uma sem-rumo, não sabia o que queria. Argumentei, por orgulho e porque não estava acostumada a levar pés na bunda. Não, ele não queria tentar mais por que eu não sabia o que estava tentando. Pronto, era assim, que eu não me perdesse definitivamente na minha confusão. Passar bem.

Passei.
...
Leila S. Terlinchamp
Charlotte Brontë
1816-1855
...

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O quadro


[Obs:História baseada no conto ‘La Fresque’ retirado do livro “Chroniques de l’étrange” de Pu Songling (1640 – 1715), autor chinês que já foi traduzido para todas as línguas latinas exceto o português. Eu estou trabalhando na tradução de alguns dos seus contos (não do chinês, infelizmente, mas do francês e/ou inglês)em conjunto com uma pequena editora.]
...

O quadro

Virgílio, originário de uma cidade do interior, encontrava-se na capital em companhia de seu amigo Pietro. Um dia caminhavam os dois sem destino certo por ruas e travessas quando encontraram um pequeno museu. O lugar estaria completamente deserto não fosse a presença de um velho empregado que cochilava quando eles entraram. Mal os viu, o homem compôs respeitosamente as roupas e, cumprimentando os dois visitantes, ofereceu-se para lhes mostrar o que considerava seu pequeno refúgio.
A sala principal abrigava máscaras e estátuas de personalidades ligadas à literatura, as paredes laterais eram cobertas por quadros pintados com tal delicadeza que se podia tomar por verdadeiras as figuras humanas ali representadas. Em um dos quadros via-se Ariadne sorridente, a palma da mão levantada, rodeada de outras mulheres de beleza quase comparável à dela. Sua figura, porém, se destacava e comoveu o coração de Virgílio. O olhar de Ariadne parecia um convite. Tanto concentrou-se na contemplação do quadro que perdeu o controle de si, seus pensamentos tornaram-se tão abstratos que entrou numa espécie de transe, sentiu o corpo tomar uma nova consistência, como se flutuasse num estranho nevoeiro - Subitamente estava dentro do quadro.
Assustado, Virgílio compreendeu que se encontrava em outro mundo. Ainda abestalhado sentiu que o puxavam furtivamente pela manga, virou-se: Ali estava Ariadne a lhe sorrir. Ela afastou-se repentinamente e ele a seguiu de perto pelas galerias sinuosas até a porta de um quarto, uma vez ali, ele hesitou, não ousava entrar. A moça voltou-se e acenou de forma tão convidativa que Virgílio não pode resistir. Percebendo que não havia ninguém no quarto tomou-a imediatamente nos braços sem que ela oferecesse resistência. Horas mais tarde, satisfeita , ela se levantou, fechou as cortinas e, depois de avisar que ele não deveria emitir sequer um ruido, saiu prometendo que voltaria quando a noite caísse. E assim foi, voltou nessa noite, na noite seguinte e outras até que numa dessas vezes ouviu-se lá fora, no meio de vozes exaltadas, passos fortes juntamente com um tilintar de correntes. Ariadne levantou-se apavorada e espreitou pela janela: era um dos guardas do palácio. À sua volta se encontravam todas as outras moças. “Onde está Ariadne?", perguntou o homem. "Estava indisposta, está descansando", respondeu uma em nome de todas tentando acobertar a moça que elas tanto amavam e a quem tanto apreciavam escutar. "Se alguma de vós estiver escondendo algo importante será pior para todas. Não criem problemas dos quais ninguém vos poderá defender". O oficial, com o seu olhar de águia, parecia prestes a dar busca no esconderijo. Ariadne só teve tempo de dizer: "Rápido, esconde-te debaixo da cama". Quanto a ela, abriu uma porta secreta na parede e desapareceu num segundo. Virgílio mal se atrevia a respirar. Lá fora, o barulho das vozes ia esmorecendo. Apesar do medo e do desconforto não tinha outro remédio senão esperar, muito quieto, pelo regresso da jovem pois, tão toldado se encontrava seu espírito, que já não sabia de onde tinha vindo...

Ao aperceber-se do súbito desaparecimento de seu amigo, Pietro, perplexo, perguntou ao velho o que se passara. "Foi ouvir as histórias de Ariadne", respondeu com um sorriso irônico nos lábios. "Onde?" "Não foi longe", atalhou o outro dirigindo-se ao quadro. Chegando-se à pintura bateu com um dedo e perguntou: "Porque demoras tanto?" Imediatamente surgiu no quadro a imagem de Virgílio, a face descomposta pelas emoções, a cabeça ligeiramente inclinada como se estivesse a ouvir alguma coisa. "Há muito tempo teu companheiro te espera”, prosseguiu o homem. Nesse momento ele caíu do quadro e ficou prostrado no chão, os olhos esbugalhados e as pernas a tremer. Assustadíssimo, Pietro perguntou-lhe o que acontecera. O amigo não sabia o que responder; na verdade, estava debaixo da cama quando ouvira um enorme fragor, como se mil homens tocassem a um só tempo um tambor gigantesco. Apavorado, saíra a correr da câmara.

Os dois amigos voltaram-se para o quadro; a jovem continuava ali diante das outras, mas sua mão, agora, segurava o véu. Surpreso, Virgílio voltou-se para o velho e perguntou-lhe a razão daquela mudança. "A ilusão nasce do espírito humano. Que outra explicação poderia lhes oferecer esse humilde servidor?"

Virgílio sentiu-se extremamente abatido, Pietro estava confuso. Ambos se levantaram e desceram as escadas que conduziam à saída.

Leila S. Terlinchamp

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Escultor

Escultor, feita por mim em algum lugar perdido de Formosa (Taiwan)

domingo, 24 de agosto de 2008

Mosaico de horas

Eu e essa estrada, faz anos que é assim, tantos que ela já é quase uma pessoa. Uma pessoa, é isso, a gente vai rodando... rodando.... nessa solidão e começa a racionar besteiras, uma estrada vira uma pessoa, já se ouviu de tudo, quer dizer, na verdade ninguém ouviu porque estou matutando sozinho. Mas, se tivesse alguém aqui eu ia mostrar o tanto que conheço bem esse caminho, daqui a uns quinze ou vinte minutos vou passar por aquela árvore grande pendendo pra esquerda, uma de galhos engraçados, parece que quer abraçar, vamos ver, vou marcar no relógio, tivesse alguém aqui ia ver como estou certo. Bom, ia ver ia ver e de quê isso ia servir? De nada. Uma inutilidade saber que em tal lugar dessa estrada tem isso ou aquilo. Algumas vezes necessitamos também dessas coisinhas inúteis, essa que é a verdade, ajuda ao menos a pontuar minha solidão. É que tenho que manter a cabeça ocupada, essa vida de estrada é muito das esquisitas se a gente analisar, estrada, estrada e mais estrada, ninguém imagina o que é isso, nem eu imaginava que um dia ia ser assim, que a solidão pudesse ser tão vasta, que ia ter que treinar a minha própria cabeça para não ficar doido, vou pensando numas coisas e tentando não pensar noutras, às vezes pulo sem mais nem menos de um assunto pra outro, mudo completamente de rumo, de propósito. Lá está a tal da árvore, vamos ver, dezessete minutos contados, nem quinze, nem vinte, mas dezessete que está no meio. Olha lá, dá até vontade de abanar a mão pra ela. Veja o que a solidão faz com um homem, estrada vira gente, árvore vira gente...Um dia escutei no rádio uma história estranha, era sobre as sereias, essas também foram uma invenção da solidão do homem. Ficavam os marinheiros a marear por longos meses, anos, quem sabe, naquela solidão absoluta, quer dizer, só não era mais absoluta que a minha nesse caminhão porque lá eles tinham outros homens pra conversar, mas sempre os mesmos...não sei, em todo caso, mulher é que não viam, daí a imaginação desses coitados transformou um peixe - um peixe que consegue sair da água por uns instantes – na mais bela criatura fêmea que havia, fêmea, mas não mulher, ou mulher só pela metade. Solidão é isso, invenção. Estrada, minha estrada, até quando seremos nós dois?

De noite leio umas pagininhas do bang-bang, escuto as notícias no rádio e durmo, umas vezes o sono vem rápido, outras demora, quando demora é o diabo, esticar essa solidão diurna é pagar os pecados que a gente nem tem tempo de cometer. Na manhã seguinte, a estrada está lá esperando a minha marca, é quase infinitamente assim, um dia não há de ser mais porque até o que parece infinito tem que ter um fim. É.

...

imagem:Ichi en so, shingai Tanaka

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Les escaliers du Montmartre, Paris.
Brassai

Óleo sobre tela

....e como era aquele tempo em que as pessoas não tinham fotos amareladas para ver ? aquela chinesa ali, tão grávida, que parou para descansar [o marido americano segura a bolsa enquanto isso. bolsa de mulher] tem em casa uma foto antiga da mãe na China. da sua boca sairá uma filha que ela quererá perfeita e, quem sabe, cristã. mas aquele outro casal que passa, ele chinês, ela chinesa, observa sem pudor aquela que ali descansa o seu ventre já quase maduro e o marido que segura ternamente a bolsa feminina. A bolsa outra, dia desses, rebentará e uma menina muito linda e mista verá a luz. mas o olhar do outro casal lançou uma sombra na boca da grávida. a boca mensageira, corrosiva ou libertária, a boca que recriará uma avó chinesa, uma língua chinesa e os parques da China tão mais vastos e verdes que este americano e plástico. a graça imperfeita da China parecerá tão distante e a foto da avó desdentada e camponesa será uma irrealidade. a mãe entoará berceuses em chinês. deve existir berceuses em chinês. sim.

15/08/2004

domingo, 27 de julho de 2008

The artist's garden at Giverny, Claude Monet
...

Imprudência

Separei, sempre, o joio do trigo e, muitas vezes, fiquei com o joio. Não foi a sorte ou o azar, foi a imprudência. Eu podia ter escolhido o Luís, mas não, fiquei com o Lazinho. Imprudência! Está vendo minha cara quebrada? Significa que fiquei com o joio, entendeu, doutor? Uma lástima. Claro que não foi a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira. Olha também aqui na minha coxa, viu? Estragar umas coxas dessas, doutor? Modéstia à parte...Um dia o desgraçado quase me arrebentou a cabeça, está aí escrito, dei queixa. A imprudência me fez voltar. Daí, doutor, respondendo à sua pergunta, foram sete facadas de raiva, de dor, de medo. Imprudência pura. Devia ter dado um tiro.

O bife

Natal é sempre a mesma merda, entra ano sai ano, tudo igual. E foi num natal, justamente, que eu abocanhei aquele bife do meu pai. Antes, isso era regalia dele, para nós, só a gordura que sobrava e mamãe misturava numas batatinhas.

Lá se vão tantos anos, mas ainda lembro da cena: meu pai sentado com o prato na mão, preparando para meter os dentes no bife, nós, as crianças, brincando pelo chão e mamãe lavando vasilhas, foi então que o homem entrou, da porta mesmo, sem dizer bom dia, deu os tiros no meu pai que mal teve tempo de se assustar. Eu só tinha uma idéia na cabeça, o bife. Corri, peguei aquele pedaço suculento e comi num piscar de olhos. Os outros choravam apavorados. Só dei por mim depois de ter terminado de engolir. Ainda vi mamãe enxugar as mãos na roupa e sair pelo portão, tomar a rua e caminhar, caminhar, sem olhar para trás, nunca mais voltou. Fomos todos para o orfanato e agora, velha, estou aqui nessa casa de velhos. Hoje me aparece esse aí distribuindo balinhas, rindo e soltando uns ho ho ho fingidos. Quem precisa dele e desses bombons nessa velhice besta?

O que eu queria mesmo era poder comer de novo um bife igual àquele.

Lolita - Capa

domingo, 13 de julho de 2008


Xantipa

Aqui dorme-se bem, o colchão é macio, os lençóis alvos e perfumados. Sim, aqui dorme-se muito bem, não é como no meu pequeno e imundo barraco. Gostei dessa ilha tranqüila e silenciosa, sobretudo agora. Vou partir contrariada, com o coração aos pedaços, diria se fosse um pouco mais dramática. É duro abandonar tanto conforto, mas já é tempo. Amanhã pego o barco e vou por aí, deixo todo mundo aqui que eu estou cansada dessa gente. Obrigada pela cama, pela boa comida, pelos vinhos, pela praia, pelo sol, por tudo….Vou-me. Depois de tantos anos, digo-lhes, finalmente, adeus!


Dona Adélia Campos Guimarães, minha patroa, nem responde, os outros também não. Ninguém mais responde e nem ordena: ‘Xantipa vá buscar isso, por favor.’ ‘Xantipa, nós vamos jogar tênis, prepare um lanche para daqui a duas horas, sim?’ ‘Xantipa, vamos jantar às oito horas, prepare os camarões.’


De manhã lhes sirvo café quente, pães, sucos, limpo a mesa, o chão, troco os lençóis, lavo as toalhas, muitas toalhas que devem estar sempre limpas e cheirosas. Mas tudo isso é pretérito imperfeito, falo no presente por descuido e costume, agora estão todos lá fora, com a boca já cheia de formigas, outros estão ainda na varanda onde lhes servi o camarão bem temperado. Camarão é uma comida estranha e facilmente perecível, eu mesma detesto camarões, sou alérgica, mas eles gostam, digo, gostavam. O Valter não deve ter comido bastante e me deu trabalho. Droga! Esse imbecil bebia tanto que não se importava em comer. Eu devia ter temperado as bebidas também. Da porta vi quando os outros começaram a sentir tonturas, alguns não tiveram a decência de procurar um canto escondido para vomitar e, vendo aquele espetáculo, vomitei também. Não suporto ver gente vomitando, tenho o estômago fraco, ele dá umas reviradas e, como num ato de solidariedade, vomito junto. Valter, que já estava bêbado, não entendia direito aquelas cenas. Alguns correram para o mar procurando, decerto, se refrescar, então, percebendo que não se tratava de uma brincadeira, o beberrão quis entrar para telefonar, eu empurrei a porta e me tranquei aqui dentro. Ele deu murros, pontapés e depois tentou as outras entradas, mas não tinha muita força, desistiu e tentou chegar ao barco, logo o alcancei e dei-lhe uma cacetada na cabeça. Merda, com essa eu não contava, mas tive que fazer, com o barco ele podia, rapidamente, avisar um dos vizinhos. Foi chato isso, pois uma coisa é envenenar comidas, outra é sair distribuindo cacetadas em cabeça de bêbado. Para o envenamento eu tinha me preparado com muita antecedência, tinha estudado e, além disso, era colocar o veneno e esperar agir, já as cacetadas foram todas improvisadas, uma violência. Foi chato, muito chato, mas está feito.


Agora é apagar o que puder dos meus traços, juntar as minhas poucas roupas e desaparecer. Vou amanhã bem cedo antes que os curiosos apareçam por aqui, o telefone tem tocado cada vez mais, os recados preocupados se acumulam na secretária eletrônica. É tempo.


Bruxelas 11/10/2000

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust
1871 - 1922
A vida nem sempre é rosa

Eis-me aqui, dirigindo carrinho de supermercado, e ainda por cima sujo. Ai, Deus! Cinquenta e dois anos, peitos em cima, bunda em cima, umas rugas aqui e ali no rosto, é verdade, sobretudo agora que não tenho mais dinheiro para o botox e para aqueles cremes milagrosos. Milagrosos, desde que se disponha da bufunfa, claro, claro! Disso não disponho mais. Filho de uma puta, me abandonar assim, depois de tantos anos. Dessa vida nova, uma das coisas que mais detesto é ter que vir a supermercado, ainda mais esse aqui cheio de pobre, ó desgraça, olha aquela ali com salto de um metro às três da tarde...e saia curta! Tenha dó, que falta de classe. É o que chamo de falta de classe, estampar assim a piranhice. Cruzes! Olhe bem as palavras que você anda usando, Leda. Deus-me-livre, não é porque você agora é pobre que tem que vir com essas. Mas, enfim, infelizmente aquilo ali não tem outro nome, é piranhice mesmo, e das boas, essas sandálias baratas, tá na cara que são baratas, feias e altas combinadas com mini-saia. Enfim, o que não deve ser barato nesse supermercado? Ai, coitada, dignas de pena essas moçoilas de ar idiota. Olha só como anda! Dá até vontade de ir lá explicar “Querida, se você não sabe andar com esses saltos, coloque uns mais baixos, você pensa que aquela modelo que você vê na revista sai por aí a fazer compras de salto? Não, não, a elegância consiste em saber a hora disso e daquilo.” Mas quem sou eu para dar conselhos, cinquenta e dois anos de elegância e aqui, largada com uma mesada ridícula. Isso é outra coisa que não entendo, essa mudança dos tempos, antigamente eu via as mulheres se separarem felizes, com uma bela duma pensão, indo curtir a vida numa boa com os namorados....Agora, quando é a minha vez, me sobra essa mixaria. Sinceramente, os tais mistérios! Bom, o mistério maior é que aquele salafrário conseguiu esconder boa parte do dinheiro dele e o juiz preferiu acreditar. Homens! Mas que merda, não acho nada nesse supermercado. E o pior de tudo, o pior, não fui trocada por uma dessas beldades de vinte ou trinta anos, não, nem fui trocada, simplesmente isso, cansou-se de mim, cansou-se, que eu não levasse a mal. Não disse isso nessas palavras, classe é algo que Frederico tinha de sobra, tinha não, tem né, ele não morreu. Agora sei que está tranquilo e calmo percorrendo a Europa com um amigo, inclusive as más línguas dizem....Eu não quero nem saber, estou fora desse jogo mesmo.

Outro mistério desse universo pobre: porque razão alguns têm que vir ao supermercado com toda a prole? Juntam os pirralhos todos e trazem ao supermercado como se aqui fosse parque de diversões. Ai, que saudade da Dona Zuleica viu, com ela eu não precisava nem me lembrar que supermercado existia, escolhia tudo do bom e do melhor, um verdadeiro chefe. Claro, ela está lá com o Frederico, óbvio, primeiro porque nunca gostou mesmo de mim, me tolerava, isso sim e quando eu viajava, eu bem sei, o Frederico podia transformar a casa em clube gls. Sim, no fundo as más línguas têm razão, eu nunca quis dar ouvidos antes porque me convinha, afinal que marido empurra a esposa para férias de um mês, dois meses até, na Europa sem nem perguntar com quem está indo? Pois é, agora aqui estou dirigindo esse carrinho de supermercado. Que merda! Amantes eu tive de sobra, hoje, quando pego a agenda e ouso telefonar para algum deles, só escuto desculpas das mais esfarrapadas, cada um mais ocupado que o outro, viraram homens de negócio, artistas.....o caramba, até parece! É como se eu tivesse uma doença contagiosa. E tenho mesmo, essa doença se chama pobreza, foram-se as viagens, os bons restaurantes. Frederico-filho-da-puta! Quem diria que aquele homem tranqüilo, elegante e bonito podia puxar assim o meu tapete. O juiz diz que o apartamento, o carro e a mesada que ele me deixou são suficientes. Suficientes, senhor juiz? Eu queria ver se o senhor fosse uma mulher de cinquenta anos, aí a gente podia conversar de igual pra igual. Agora uma coisa eu juro, nesse supermercado chinfrim eu não piso nunca mais, nem que eu tenha que começar a vender minhas jóias. Tudo tem limite nessa vida. Ai, Zuleica, traidora! Sim, fique aí com o seu Frederico, o galante, eu, a fútil me cuido só. Ah, não, nessa fila eu não entro, basta, chega dessas economias estúpidas, não quero saber de futuro, vou arrumar uma Zuleica pra mim.

Junho 2005

Não creio em bruxas, mas...

Lorena, com seu rosto de uma brancura alabastrina, nariz minúsculo e olhos que lembravam dois lagos plácidos comoveu-me à primeira mirada. Sou do tempo em que, para se descrever uma mulher, não temíamos os clichês. Casamo-nos depois de muito verbo, muitos presentes, muita amolação dos meus filhos que não queriam ver a herança escorrendo para mãos alheias. Um dia chego em casa ansioso por beijar minha doce Lorena e a encontro com Letícia, bebendo e rindo. ‘Minha melhor amiga’, disse ao apresentá-la. Semanas seguidas, ao chegar, tinha que fazer face àquela irritante presença. Insisti com Lorena para que fizéssemos uma viagem, ela recusou, não só recusou como explicou que ela e Letícia iam viajar juntas para uma convenção de bruxas, sim, que eu acreditasse, eram bruxas, eu podia esquecer tudo aquilo que conhecia sobre velhas de dentes pretos e nariz cheio de verrugas. Fez até uns truquezinhos para provar. Esperneei, aquilo já era abuso, ela ameaçou anular o casamento e eu cedi porque, apesar de todas as estranhezas, não queria arriscar-me a perdê-la. Por mais de um mês estiveram a viajar, meus filhos aproveitaram o tempo para aporrinhar-me, tratando-me como um velho gagá que tinha abandonado por completo o bom senso. Mas não era o meu senso que os preocupava.

Chegaram as bruxas, sim, chegaram, no plural. Encontrei-as dormindo na sala, livros jogados aqui e ali. ‘E então?’ Resmunguei alto com o claro intuito de acordá-las. Abriram os olhos se espreguiçando como duas gatas, disseram que estavam estudando bruxarias e caíram no sono....Olhei para as capas: Anaïs Nin, Virginia Woolf? Nunca me ocorreu que tivessem sido bruxas. Riram a mais não poder da minha observação e nem se deram o trabalho de explicar a bizarrice. Maldito o dia em que sucumbi, em que olhei para aqueles olhos, estava mesmo senil. Suspirei desanimado e sentei-me no sofá na frente delas. Comovidas pela minha resignação, vieram as duas, sentaram-se cada uma de um lado, passaram as mãos na minha cabeça e perguntaram, com uma doçura que me espantou, se eu estava bem e se desculparam pela risada sem propósito. Vocês são mesmo bruxas? Perguntei. Somos umas bruxinhas amadoras. Foi Letícia que respondeu, com uma voz brincalhona. Olhei para ela e só então percebi como era bonito o seu sorriso. Você vai morar aqui, Letícia? É um convite? Foi sua resposta. Era certo que eu estava perdendo a cabeça. Correu para a cozinha dizendo que ia preparar um banquete para comemorarmos, e preparou mesmo, fazia tempo que eu não comia e bebia tão bem. Preparam ainda meu banho, minha cama, contaram-me histórias até eu dormir, mas, quando acordei, não era em minha cama que Lorena estava. Levantei cedo e lá vieram as duas dar-me bom dia com beijinhos de filhas comportadas, agradecendo por eu ter ‘deixado’ Letícia morar conosco.

Agora nossos dias correm tranqüilos, adequei-me a esse estilo. É faltar uma delas em casa e já fico confuso.

Bruxas? Não acredito.

...

imagem: Enigmatique, Keith Mallet

terça-feira, 8 de julho de 2008

Saint-Exupery
...

terça-feira, 1 de julho de 2008

Minas Gerais - Sítio

segunda-feira, 30 de junho de 2008


Malásia, Kuala Lumpur.
Festival em Batu Caves
...
Leila S.

domingo, 29 de junho de 2008

Le baiser de l'hotel de Ville, Robert Doisneau.
...
O canto

“Fear no more the heat o’ the sun

Nor the furious winter’s rages.”

Shakespeare

Londres. Uma mulher canta uma música antiga. Cantava, naquela mesma calçada, em frente à estação Regents Park, desde 1923. Um canto que celebrava a vida e Laura só conseguia pensar na morte. Aquela língua não era a sua, mas havia uma tal beleza na voz e nas palavras. Como podia estar ali por tanto tempo? Laura tinha decidido que naquele dia ia fazer pães de queijo. A mãe explicara tudo por telefone. Peter era tão britânico, até na forma de comer, não ia gostar, tinha certeza, mas ia experimentar e ia dizer “Oh, darling!” Peter era tão britânico, mais que isso, era tão londrino, suportava quinze dias fora de Londres, não mais. O céu de Londres era tão diferente do dela. Como é que duas pessoas estranhas decidem viver juntas? Em que momento? Irracional e humano. Tinha saído para comprar ovos e polvilho, aquela sacola agora a incomodava. Peter nunca ia gostar dos seus pães de queijo, ainda que ela os fizesse como a sua mãe. Tinha graça preparar tudo aquilo só para ela? Ia preparar, tinha tomado esta decisão pela manhã, durante a noite, aliás. Tinha dormido pouco, muito pouco. Coloca a sacola com os ovos no chão, enfia as mãos nos bolsos do casaco para aquecê-las enquanto ouve a velha e o seu canto que celebra a vida, então um menino passa de patins, esbarra nos ovos, vira-se e, sem parar, diz: “Sorry!” Laura abre a sacola, enojada, vê uma gosma formada por algum ovo quebrado. Quantos? Ainda tinha o suficiente para a sua receita, não precisava de mais que três. Sente as mãos geladas, mete-as de novo no bolso e volta a olhar para a mulher. A mãe de Peter, tampouco, ia gostar dos pães de queijo, era um saco ver aquelas caras educadas, mal engolindo a comida, com um prazer fingido. Propositadamente fingido. Coisas que ela, Laura, adorava. E o respeito que tinham pela família real!? Tratar aqueles bonecos com tanto apreço, palhaçada.... Enfim, maldade julgá-los somente por este ângulo. O que tinha ela hoje? Laura! Laura! Acorda. Essa mulher, daqui a milênios, vai estar cantando esta mesma canção. Londres era tão fria em janeiro. Quantos janeiros já tinha passado ali?

Não era verdade que pensava na morte, como podia pensar na morte carregando a vida em seu próprio ventre? A continuação dela e de Peter, e da mãe de Peter que defendia a monarquia e do pai de Peter que não vivia mais e de sua mãe que tentava lhe ensinar, de longe, a fazer pães de queijo e que depois chorava ao telefone. ‘Minha filhinha!’ Bobagem, não era exatamente na morte que estivera pensando. Mulher nenhuma.....Todo mundo, garantiu o médico, tinha seus momentos e nesse estado, então, era mais do que perdoável. Perdoável? O médico tinha dito isso? Perdoável? Ou foi Peter? Ela tinha que ser perdoada?

Sente, no fundo do bolso, uma moeda, joga-a para a mulher que cantava, e ela move os olhos. Agradecidos? Um discreto tilintar. Laura pega a sacola, entra na estação de metrô e caminha pensando em Peter. Peter que já devia estar esperando em casa para escolherem juntos a cor do quarto do bebê.

Leila Silva Terlinchamp
publicado na Revista Cult.

Quill Pen and Ink - Dave Ryan
...
O blues de Flora

Escrevi a Flora falando da imensidão do mundo e das constelações que cabem nele, acrescentei que nós, desmesurados e efêmeros, também estamos dentro dele. Queria convencê-la da beleza das estrelas e de seu pertencer.

Flora em nada acreditava e ainda debochou da minha insensatez. Queria Canterburry com suas igrejas e contos, queria Bagdá, Alexandria e Pérsia. Queria mais que o poeta.

Foi por isso que abriu a janela e mergulhou na vastidão.

A japonesa

Comprei, em um museu de Washington D.C, uma gravura representando uma japonesa de cabeleira negra, rosto redondo, sobrancelhas finas, a boca, um pontinho vermelho e delicado, o nariz é um traço quase invisível, da mesma cor do fundo e apenas mais escuro que o rosto, a mão também pequena, de dedos finíssimos, os três do meio dobrados, levantando uma parte da roupa, o ‘mindinho’ livre. A outra mão está completamente escondida na manga do kimono. Esta japonesa vem me acompanhando há algum tempo e, por força de tanta viagem e maltrato terminou por ficar meio amassada. De vez em quando eu desenrolava o cartucho e a contemplava, mas só agora tive tempo e vontade para mandar emoldurá-la. ‘Uma moldura simples e não muito cara.’ Pedi pensando que não valeria a pena investir já que a gravura apresentava imperfeições.

Uma vez emoldurada percebi que os amassados se tornaram quase imperceptíveis, mas não me arrependi de ter optado por aquele acabamento simples, caía bem, a moldura não roubava a atenção. Pude apreciar melhor a minha japonesa, congelada naquele movimento lento, meio de lado, a boquinha suave de um pontinho só...Ela me fez pensar em outra japonesa, aquela pintada por Van Gogh, de um certo modo parecida com esta só que virada para a esquerda e muito mais colorida, os cabelos num arranjo exagerado e os olhos parecem sorrir de um jeito meio cínico, como se estivesse a zombar da gente ou como se tivesse feito uma travessura. Em tudo isso, muito diferente desta que tenho aqui.

Pendurei a gravura no meu quarto, à noite estava a contemplar esta delicadeza, aqueles olhinhos que não sabemos para onde olham, os pezinhos que não se deixam nem adivinhar, os tecidos finos cobrem tudo, que trabalhe a imaginação! Levanto-me da cama e me aproximo da gravura para ler as referências. Descubro, com espanto, que a minha linda japonesa é, na verdade, um homem:

‘Actor portraying a woman, Japanese painting, Edo (Kambun Period 1661- 73)Ukiyoe School.

Volto para a cama meio magoada com a minha japonesa por ter se dissimulado durante tdo esse tempo, depois percebo, claro, que eu é que não quis ver a realidade que estava estampada ali...Enfim, sem razão, mas ainda assim meio contrariada, durmo.

Pela manhã o primeiro gesto, erguer a mão e alcançar aquilo que parece uma parte de mim, os óculos, com eles no rosto contemplo, uma vez mais, a graciosa e dissimulada japonesa. Sonolenta reflito, ou melhor, repito, ‘Há mais mistérios entre o céu e a terra....’e decido que isso é bom, ‘Fiat lux’. Abro a janela e vislumbro o novo dia.

E que me importa o sexo oculto sob aquele kimono?


Andanças

Um dia vi Veneza,

Vi Paris e Istambul.

Em Istambul queriam me vender tapetes mas disse ‘No, thank you’ e fui ver a mesquita Azul. Depois tomei uns porres e fui ao Hamam, onde mulheres com os peitos grandes à mostra me banharam, me massagearam enquanto narravam umas às outras as peripécias do dia. Isso é o que eu supunha, visto que de turco, nada entendia.

Em Veneza comprei um chapéu barato que levei para Cingapura.

Cingapura eu vi, revi e vivi e lá deixei o meu chapéu veneziano.

Em Cingapura chovia.

Todo dia.

Minha amiga japonesa nunca se esquecia da sombrinha.

Tão precavida, essa Misako.

E eu, tão descuidada, tomava muitos pingos e sofria de sinusite. Uma chinesa quis me tratar com acunpuntura dizendo, com muita honestidade : ‘Vai doer !’. Covarde, fui embora. Já me bastava a dor da sinusite.

Fui a Roma e não vi o Papa, fui ao México e não vi Cancun.

Na cidade do México, o motorista de táxi me fez escutar Nélson Ned, ´um grande brasileiro.` Explicou-me e levou-nos à casa de Dolores Del Rio. Frida também estava lá.

Nunca vi Cusco, nem Bagdá

Nem Jerusalém, nem Calcutá.

Mas tempo haverá.
Que o Senhor vos acompanhe

Tio Pedrinho tomou um copo de água, caminhou devagar até o quarto, rezou e foi dormir. Lá pelas tantas escutou um barulho, levantou-se de um pulo, pegou a espingarda e apontou para o sujeito “Que é que cê tá querendo aqui, ô nortistinho?”, perguntou com voz determinada, tentando disfarçar o medo. Ninguém respondeu. Ele ajeitou os óculos e percebeu que o ‘nortistinho’ era a sua própria imagem refletida no espelho do guarda-roupa. Riu de si mesmo, largou a espingarda num canto e foi tentar achar o sono outra vez porque era sábado, e domingo de manhã era dia de ajudar o padre a celebrar a missa. Rezou mais uma vez para ver se o sono voltava. Com essa história do nortistinho tinha perdido a vontade de dormir. Levou um belo susto. Também, todo mundo só fala desse Orlando Sabino e é nisso que dá, a gente começa a dormir e acorda assustado, vendo coisas, pensava ele. Orlando Sabino era o bandido mais temido desses dias. Ele já tinha matado com grandes requintes umas vinte pessoas, ou cinquenta ou cem…os números e os fatos variavam dependendo do contador e do jornal. Enfim, tirou os óculos, colocou-os à mão no banquinho ao lado da cama e dormiu.

De manhã vestiu-se elegantemente, pôs o chapéu e caminhou devagar até a igreja. Lembrou-se do susto durante a noite. Já tinha esquecido completamente. Riu de novo de si mesmo. Aquilo foi engraçado. E ele chamando a si mesmo de nortistinho! Era muito engraçado. Se não estivesse na rua ia rir de verdade mas ali, se passassem por ele iam pensar que estava louco. Lembrou-se da mulher chata e feia que deixara em casa. Nem se desejaram bom dia, tomou o café que ela tinha preparado e foi tudo. Ela era velha agora mas já era feia e chata quando jovem. Casou-se com ela meio assim de susto. Não pensou direito. Analisava. Que pena que não conhecera a irmã dela melhor antes do casamento. Bom, agora já estava feito. Já estava feito e já tinha muito tempo, muitos filhos, muitos netos. Não havia muito sentido em pensar nisso e não era culpa dele se não teve tempo de decidir direito antes de casar-se com a megera. E era culpa dele se a irmã dela ficava lá na casa dele tentando? Não era fácil ter aquela mulher feia e chata com uma irmã tão boazinha e fácil. Um dia não resistiu e os dois pecaram. Depois da primeira vez foi fácil fazer novo e de novo até que a cunhada ficou grávida e, apesar de todos os esforços, não teve como abafar o escândalo. Depois disso cada um foi para o seu canto. Ele foi enfrentar a esposa e a outra virou mulher da vida. Mais ou menos mulher da vida, vivia com um, depois com outro. O tempo ajeita tudo. Analisava.

Assim, sem se dar conta chegou à praça, cumprimentou o farmacêutico que estava sentado no banco em frente à farmácia. Atravessou a rua, andou mais um quarteirão. Do outro lado da rua viu o marido da sua neta e cumprimentou-o um pouco envergonhado lembrando-se do acidente com a espingarda. Tio Pedrinho estava de carona com neto e levava a espingarda carregada entre os joelhos, apontada para cima. Quando o carro passou por uma estrada esburacada, chacoalhando muito a espingarda disparou e fez um furo no teto do carro. Não sabendo o que dizer, tio Pedrinho disse “Ainda bem que não pegou na lamprinha”. Ele era engraçado, tio Pedrinho. O meu primo, entretanto, não achou muito engraçado o buraco no seu carro. Ficou danado de raiva. Ainda assim, atravessou a rua e veio pedir a benção e tio Pedrinho respondeu, muito digno “Deus te abençoe, meu filho. Onde é que você está indo?”Ele estava indo para a fazenda. Nunca ia à missa.

Chegou à igreja, tirou o chapéu, entrou e foi andando até o cômodo detrás do altar, lá onde o padre se vestia e onde guardavam o cálice, o vinho e as hóstias. O padre já estava se arrumando. Ele não vestia batina no dia a dia, só para celebrar a missa e quando ele erguia as mãos consagrando a hóstia a gente podia ver a barra das calças dele. Aquela barra da calça destoava do resto, não combinava com o espetáculo. Tudo era muito bonito mas aquela bainha aparecendo! Era um desmazelo da parte do padre e parecia acordar a gente para a realidade. E a gente não esta ali para isso. Estávamos ali para ver o padre de branco, a hóstia branca, o altar forrado de branco com umas flores aqui e ali, as três irmãs na primeira fila e o tio Pedrinho ajudando o padre. Daí a gente olhava para baixo e via a bainha marron do padre. Ah, não! Nunca me queixei, entretanto, senão ainda levava uns cascudos da minha avó que era irmã do tio Pedrinho. “E porque é que você está olhando para os pés do padre enquanto deveria estar olhando para a hóstia que ele está consagrando?” Eu já sabia disso. Eu era criança mas não era boba, sabia que quanto menos falasse, melhor. Era assim a minha infância nesta grande família e nesta pequena cidade.

Com as palmas das mãos para cima, todo mundo rezava “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino…..” Depois as irmãs entoavam o coro “Eu sou o caminho, a verdade e a vida….” E todos cantavam desafinadamente. No final o padre dizia “Vão em paz, que o Senhor vos acompanhe”. Então todo mundo ia saindo, cumprimentando todo mundo. Tio Pedrinho saía também. Todos discutiam por uns minutos na frente da igreja até que sentiam calor ou fome e cada um voltava para as suas casas para viver o domingo.


Marilyn Monroe, Eve Arnold
....
Poet's Walk, Henri Silberman
...

Doce é a infância

Na frente da casa, do outro lado da rua, ficava a cadeia, um dia Lídia, ainda tão pequenina, caminhava sob os mangueirais quando o seu olhar cruzou-se com o de um prisioneiro à janela, as pernas e os braços livres, enfiados na grade. Podia vê-lo muito bem, a cadeia não era cercada por muros. O encontro durou poucos segundos, ela continuou os seus passos lentos, chutou algumas folhas e, decerto, desviou o olhar. Foi então que o prisioneiro disse: ‘Não precisa ter medo.’ Ela chutou mais algumas folhas e continuou a andar olhando para o chão. Não tinha medo, raciocinou, afinal, ele estava do outro lado da grade e ela de fora. Mas quem era ele? Nessa altura, já tinha aprendido que aquela casa amarela não era uma moradia de gente ‘de bem’, muito embora não compreendesse o exato significado disso. Sabia, entretanto, que se a mãe chegasse ao portão e a visse dirigindo a palavra a um prisioneiro ela estaria frita. Não, não respondeu e se perguntou o que teria ele feito para merecer estar ali a observar as mangueiras por detrás daquelas grades enferrujadas. Abandonou o homem à contemplação, atravessou a rua e entrou em casa. Passou direto pela porta da cozinha onde a mãe estava ocupada com as panelas e foi para o fundo do quintal, subiu em alguns tijolos que já estavam estrategicamente postos ali e espreitou o vizinho mudo que passava os seus dias a limpar a casa. Limpava tanto que o chão refletia. Pelo muro ela, as irmãs e primas costumavam observar o mudo e o alpendre reluzente e riam sem saber porquê. O mudo tinha um mico preso por uma corrente e um papagaio. E o papagaio falava. Pois é.

O mudinho, diziam, ia com meninos para o meio do mato. E daí que o mudinho fosse para o mato com os meninos? Ninguém era proibido de andar no mato. Ou a ele isso era proibido só porque era mudo? Mais um dos muitos mistérios. ‘O mudinho vai para o mato com os meninos’. Até a prima viera lhe dizer isso esperando que confessasse a sua ignorância mas ela só fez arregalar bem os olhos como se a revelação a tivesse impressionado muito.

Desceu num pulo dos tijolos quando ouviu a voz nervosa da mãe e, na pressa, arranhou os dedos no muro. A mãe mandou-a comprar legumes e advertiu que não perdesse o dinheiro como tinha feito da última vez. ´Essa menina parece que vive no mundo da lua!` Ouviu a mãe dizer e apertou as notas. Quando voltava, andando devagar e distraída, pela rua seis, a principal, deixou tudo cair por terra. Na sua frente apareceu um menino que ela conhecia de vista do catecismo. Assustou-se com aquela presença, o menino era um demônio que vivia atormentando as irmãs e as meninas, juntava-se a outros e balançava violentamente a corda do sino que retinia desesperado e sem propósito. As irmãs acudiam apressadas, levantando os longos vestidos e ameaçando chamar o padre. Nada disso assustava aquele moleque que, dependurado na corda, gargalhava fazendo blém…blém…blém… e só corria quando as irmãs já estavam bem próximas.

Pois esse mesmo menino estava ali, na sua frente e, num gesto inesperado, ajudou-a a recolher os legumes. Com a cara rubra, pressentindo o pior, balbuciou, timidamente: ‘obrigada’. Ele riu alto e repetiu a última frase da piada do elefante e da formiguinha: ´Obrigado nada, pode ir descendo a calcinha`. Lídia fugiu apavorada deixando para trás umas batatinhas.

Como foi boba, por um segundo acreditou na pureza daquele gesto, por um segundo aquele menino tinha mudado aos seus olhos, não podia ser o diabo que pintavam. Pode ser… pode ser que, por um segundo, a sua intenção tenha sido a de ajudá-la, mas, no último instante, ao olhar para aquele passarinho frágil não tenha resistido à tentação de dar uma pedrada.

Bruxelas, inverno de 2003.