segunda-feira, 30 de junho de 2008


Malásia, Kuala Lumpur.
Festival em Batu Caves
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Leila S.

domingo, 29 de junho de 2008

Le baiser de l'hotel de Ville, Robert Doisneau.
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O canto

“Fear no more the heat o’ the sun

Nor the furious winter’s rages.”

Shakespeare

Londres. Uma mulher canta uma música antiga. Cantava, naquela mesma calçada, em frente à estação Regents Park, desde 1923. Um canto que celebrava a vida e Laura só conseguia pensar na morte. Aquela língua não era a sua, mas havia uma tal beleza na voz e nas palavras. Como podia estar ali por tanto tempo? Laura tinha decidido que naquele dia ia fazer pães de queijo. A mãe explicara tudo por telefone. Peter era tão britânico, até na forma de comer, não ia gostar, tinha certeza, mas ia experimentar e ia dizer “Oh, darling!” Peter era tão britânico, mais que isso, era tão londrino, suportava quinze dias fora de Londres, não mais. O céu de Londres era tão diferente do dela. Como é que duas pessoas estranhas decidem viver juntas? Em que momento? Irracional e humano. Tinha saído para comprar ovos e polvilho, aquela sacola agora a incomodava. Peter nunca ia gostar dos seus pães de queijo, ainda que ela os fizesse como a sua mãe. Tinha graça preparar tudo aquilo só para ela? Ia preparar, tinha tomado esta decisão pela manhã, durante a noite, aliás. Tinha dormido pouco, muito pouco. Coloca a sacola com os ovos no chão, enfia as mãos nos bolsos do casaco para aquecê-las enquanto ouve a velha e o seu canto que celebra a vida, então um menino passa de patins, esbarra nos ovos, vira-se e, sem parar, diz: “Sorry!” Laura abre a sacola, enojada, vê uma gosma formada por algum ovo quebrado. Quantos? Ainda tinha o suficiente para a sua receita, não precisava de mais que três. Sente as mãos geladas, mete-as de novo no bolso e volta a olhar para a mulher. A mãe de Peter, tampouco, ia gostar dos pães de queijo, era um saco ver aquelas caras educadas, mal engolindo a comida, com um prazer fingido. Propositadamente fingido. Coisas que ela, Laura, adorava. E o respeito que tinham pela família real!? Tratar aqueles bonecos com tanto apreço, palhaçada.... Enfim, maldade julgá-los somente por este ângulo. O que tinha ela hoje? Laura! Laura! Acorda. Essa mulher, daqui a milênios, vai estar cantando esta mesma canção. Londres era tão fria em janeiro. Quantos janeiros já tinha passado ali?

Não era verdade que pensava na morte, como podia pensar na morte carregando a vida em seu próprio ventre? A continuação dela e de Peter, e da mãe de Peter que defendia a monarquia e do pai de Peter que não vivia mais e de sua mãe que tentava lhe ensinar, de longe, a fazer pães de queijo e que depois chorava ao telefone. ‘Minha filhinha!’ Bobagem, não era exatamente na morte que estivera pensando. Mulher nenhuma.....Todo mundo, garantiu o médico, tinha seus momentos e nesse estado, então, era mais do que perdoável. Perdoável? O médico tinha dito isso? Perdoável? Ou foi Peter? Ela tinha que ser perdoada?

Sente, no fundo do bolso, uma moeda, joga-a para a mulher que cantava, e ela move os olhos. Agradecidos? Um discreto tilintar. Laura pega a sacola, entra na estação de metrô e caminha pensando em Peter. Peter que já devia estar esperando em casa para escolherem juntos a cor do quarto do bebê.

Leila Silva Terlinchamp
publicado na Revista Cult.

Quill Pen and Ink - Dave Ryan
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O blues de Flora

Escrevi a Flora falando da imensidão do mundo e das constelações que cabem nele, acrescentei que nós, desmesurados e efêmeros, também estamos dentro dele. Queria convencê-la da beleza das estrelas e de seu pertencer.

Flora em nada acreditava e ainda debochou da minha insensatez. Queria Canterburry com suas igrejas e contos, queria Bagdá, Alexandria e Pérsia. Queria mais que o poeta.

Foi por isso que abriu a janela e mergulhou na vastidão.

A japonesa

Comprei, em um museu de Washington D.C, uma gravura representando uma japonesa de cabeleira negra, rosto redondo, sobrancelhas finas, a boca, um pontinho vermelho e delicado, o nariz é um traço quase invisível, da mesma cor do fundo e apenas mais escuro que o rosto, a mão também pequena, de dedos finíssimos, os três do meio dobrados, levantando uma parte da roupa, o ‘mindinho’ livre. A outra mão está completamente escondida na manga do kimono. Esta japonesa vem me acompanhando há algum tempo e, por força de tanta viagem e maltrato terminou por ficar meio amassada. De vez em quando eu desenrolava o cartucho e a contemplava, mas só agora tive tempo e vontade para mandar emoldurá-la. ‘Uma moldura simples e não muito cara.’ Pedi pensando que não valeria a pena investir já que a gravura apresentava imperfeições.

Uma vez emoldurada percebi que os amassados se tornaram quase imperceptíveis, mas não me arrependi de ter optado por aquele acabamento simples, caía bem, a moldura não roubava a atenção. Pude apreciar melhor a minha japonesa, congelada naquele movimento lento, meio de lado, a boquinha suave de um pontinho só...Ela me fez pensar em outra japonesa, aquela pintada por Van Gogh, de um certo modo parecida com esta só que virada para a esquerda e muito mais colorida, os cabelos num arranjo exagerado e os olhos parecem sorrir de um jeito meio cínico, como se estivesse a zombar da gente ou como se tivesse feito uma travessura. Em tudo isso, muito diferente desta que tenho aqui.

Pendurei a gravura no meu quarto, à noite estava a contemplar esta delicadeza, aqueles olhinhos que não sabemos para onde olham, os pezinhos que não se deixam nem adivinhar, os tecidos finos cobrem tudo, que trabalhe a imaginação! Levanto-me da cama e me aproximo da gravura para ler as referências. Descubro, com espanto, que a minha linda japonesa é, na verdade, um homem:

‘Actor portraying a woman, Japanese painting, Edo (Kambun Period 1661- 73)Ukiyoe School.

Volto para a cama meio magoada com a minha japonesa por ter se dissimulado durante tdo esse tempo, depois percebo, claro, que eu é que não quis ver a realidade que estava estampada ali...Enfim, sem razão, mas ainda assim meio contrariada, durmo.

Pela manhã o primeiro gesto, erguer a mão e alcançar aquilo que parece uma parte de mim, os óculos, com eles no rosto contemplo, uma vez mais, a graciosa e dissimulada japonesa. Sonolenta reflito, ou melhor, repito, ‘Há mais mistérios entre o céu e a terra....’e decido que isso é bom, ‘Fiat lux’. Abro a janela e vislumbro o novo dia.

E que me importa o sexo oculto sob aquele kimono?


Andanças

Um dia vi Veneza,

Vi Paris e Istambul.

Em Istambul queriam me vender tapetes mas disse ‘No, thank you’ e fui ver a mesquita Azul. Depois tomei uns porres e fui ao Hamam, onde mulheres com os peitos grandes à mostra me banharam, me massagearam enquanto narravam umas às outras as peripécias do dia. Isso é o que eu supunha, visto que de turco, nada entendia.

Em Veneza comprei um chapéu barato que levei para Cingapura.

Cingapura eu vi, revi e vivi e lá deixei o meu chapéu veneziano.

Em Cingapura chovia.

Todo dia.

Minha amiga japonesa nunca se esquecia da sombrinha.

Tão precavida, essa Misako.

E eu, tão descuidada, tomava muitos pingos e sofria de sinusite. Uma chinesa quis me tratar com acunpuntura dizendo, com muita honestidade : ‘Vai doer !’. Covarde, fui embora. Já me bastava a dor da sinusite.

Fui a Roma e não vi o Papa, fui ao México e não vi Cancun.

Na cidade do México, o motorista de táxi me fez escutar Nélson Ned, ´um grande brasileiro.` Explicou-me e levou-nos à casa de Dolores Del Rio. Frida também estava lá.

Nunca vi Cusco, nem Bagdá

Nem Jerusalém, nem Calcutá.

Mas tempo haverá.
Que o Senhor vos acompanhe

Tio Pedrinho tomou um copo de água, caminhou devagar até o quarto, rezou e foi dormir. Lá pelas tantas escutou um barulho, levantou-se de um pulo, pegou a espingarda e apontou para o sujeito “Que é que cê tá querendo aqui, ô nortistinho?”, perguntou com voz determinada, tentando disfarçar o medo. Ninguém respondeu. Ele ajeitou os óculos e percebeu que o ‘nortistinho’ era a sua própria imagem refletida no espelho do guarda-roupa. Riu de si mesmo, largou a espingarda num canto e foi tentar achar o sono outra vez porque era sábado, e domingo de manhã era dia de ajudar o padre a celebrar a missa. Rezou mais uma vez para ver se o sono voltava. Com essa história do nortistinho tinha perdido a vontade de dormir. Levou um belo susto. Também, todo mundo só fala desse Orlando Sabino e é nisso que dá, a gente começa a dormir e acorda assustado, vendo coisas, pensava ele. Orlando Sabino era o bandido mais temido desses dias. Ele já tinha matado com grandes requintes umas vinte pessoas, ou cinquenta ou cem…os números e os fatos variavam dependendo do contador e do jornal. Enfim, tirou os óculos, colocou-os à mão no banquinho ao lado da cama e dormiu.

De manhã vestiu-se elegantemente, pôs o chapéu e caminhou devagar até a igreja. Lembrou-se do susto durante a noite. Já tinha esquecido completamente. Riu de novo de si mesmo. Aquilo foi engraçado. E ele chamando a si mesmo de nortistinho! Era muito engraçado. Se não estivesse na rua ia rir de verdade mas ali, se passassem por ele iam pensar que estava louco. Lembrou-se da mulher chata e feia que deixara em casa. Nem se desejaram bom dia, tomou o café que ela tinha preparado e foi tudo. Ela era velha agora mas já era feia e chata quando jovem. Casou-se com ela meio assim de susto. Não pensou direito. Analisava. Que pena que não conhecera a irmã dela melhor antes do casamento. Bom, agora já estava feito. Já estava feito e já tinha muito tempo, muitos filhos, muitos netos. Não havia muito sentido em pensar nisso e não era culpa dele se não teve tempo de decidir direito antes de casar-se com a megera. E era culpa dele se a irmã dela ficava lá na casa dele tentando? Não era fácil ter aquela mulher feia e chata com uma irmã tão boazinha e fácil. Um dia não resistiu e os dois pecaram. Depois da primeira vez foi fácil fazer novo e de novo até que a cunhada ficou grávida e, apesar de todos os esforços, não teve como abafar o escândalo. Depois disso cada um foi para o seu canto. Ele foi enfrentar a esposa e a outra virou mulher da vida. Mais ou menos mulher da vida, vivia com um, depois com outro. O tempo ajeita tudo. Analisava.

Assim, sem se dar conta chegou à praça, cumprimentou o farmacêutico que estava sentado no banco em frente à farmácia. Atravessou a rua, andou mais um quarteirão. Do outro lado da rua viu o marido da sua neta e cumprimentou-o um pouco envergonhado lembrando-se do acidente com a espingarda. Tio Pedrinho estava de carona com neto e levava a espingarda carregada entre os joelhos, apontada para cima. Quando o carro passou por uma estrada esburacada, chacoalhando muito a espingarda disparou e fez um furo no teto do carro. Não sabendo o que dizer, tio Pedrinho disse “Ainda bem que não pegou na lamprinha”. Ele era engraçado, tio Pedrinho. O meu primo, entretanto, não achou muito engraçado o buraco no seu carro. Ficou danado de raiva. Ainda assim, atravessou a rua e veio pedir a benção e tio Pedrinho respondeu, muito digno “Deus te abençoe, meu filho. Onde é que você está indo?”Ele estava indo para a fazenda. Nunca ia à missa.

Chegou à igreja, tirou o chapéu, entrou e foi andando até o cômodo detrás do altar, lá onde o padre se vestia e onde guardavam o cálice, o vinho e as hóstias. O padre já estava se arrumando. Ele não vestia batina no dia a dia, só para celebrar a missa e quando ele erguia as mãos consagrando a hóstia a gente podia ver a barra das calças dele. Aquela barra da calça destoava do resto, não combinava com o espetáculo. Tudo era muito bonito mas aquela bainha aparecendo! Era um desmazelo da parte do padre e parecia acordar a gente para a realidade. E a gente não esta ali para isso. Estávamos ali para ver o padre de branco, a hóstia branca, o altar forrado de branco com umas flores aqui e ali, as três irmãs na primeira fila e o tio Pedrinho ajudando o padre. Daí a gente olhava para baixo e via a bainha marron do padre. Ah, não! Nunca me queixei, entretanto, senão ainda levava uns cascudos da minha avó que era irmã do tio Pedrinho. “E porque é que você está olhando para os pés do padre enquanto deveria estar olhando para a hóstia que ele está consagrando?” Eu já sabia disso. Eu era criança mas não era boba, sabia que quanto menos falasse, melhor. Era assim a minha infância nesta grande família e nesta pequena cidade.

Com as palmas das mãos para cima, todo mundo rezava “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino…..” Depois as irmãs entoavam o coro “Eu sou o caminho, a verdade e a vida….” E todos cantavam desafinadamente. No final o padre dizia “Vão em paz, que o Senhor vos acompanhe”. Então todo mundo ia saindo, cumprimentando todo mundo. Tio Pedrinho saía também. Todos discutiam por uns minutos na frente da igreja até que sentiam calor ou fome e cada um voltava para as suas casas para viver o domingo.


Marilyn Monroe, Eve Arnold
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Poet's Walk, Henri Silberman
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Doce é a infância

Na frente da casa, do outro lado da rua, ficava a cadeia, um dia Lídia, ainda tão pequenina, caminhava sob os mangueirais quando o seu olhar cruzou-se com o de um prisioneiro à janela, as pernas e os braços livres, enfiados na grade. Podia vê-lo muito bem, a cadeia não era cercada por muros. O encontro durou poucos segundos, ela continuou os seus passos lentos, chutou algumas folhas e, decerto, desviou o olhar. Foi então que o prisioneiro disse: ‘Não precisa ter medo.’ Ela chutou mais algumas folhas e continuou a andar olhando para o chão. Não tinha medo, raciocinou, afinal, ele estava do outro lado da grade e ela de fora. Mas quem era ele? Nessa altura, já tinha aprendido que aquela casa amarela não era uma moradia de gente ‘de bem’, muito embora não compreendesse o exato significado disso. Sabia, entretanto, que se a mãe chegasse ao portão e a visse dirigindo a palavra a um prisioneiro ela estaria frita. Não, não respondeu e se perguntou o que teria ele feito para merecer estar ali a observar as mangueiras por detrás daquelas grades enferrujadas. Abandonou o homem à contemplação, atravessou a rua e entrou em casa. Passou direto pela porta da cozinha onde a mãe estava ocupada com as panelas e foi para o fundo do quintal, subiu em alguns tijolos que já estavam estrategicamente postos ali e espreitou o vizinho mudo que passava os seus dias a limpar a casa. Limpava tanto que o chão refletia. Pelo muro ela, as irmãs e primas costumavam observar o mudo e o alpendre reluzente e riam sem saber porquê. O mudo tinha um mico preso por uma corrente e um papagaio. E o papagaio falava. Pois é.

O mudinho, diziam, ia com meninos para o meio do mato. E daí que o mudinho fosse para o mato com os meninos? Ninguém era proibido de andar no mato. Ou a ele isso era proibido só porque era mudo? Mais um dos muitos mistérios. ‘O mudinho vai para o mato com os meninos’. Até a prima viera lhe dizer isso esperando que confessasse a sua ignorância mas ela só fez arregalar bem os olhos como se a revelação a tivesse impressionado muito.

Desceu num pulo dos tijolos quando ouviu a voz nervosa da mãe e, na pressa, arranhou os dedos no muro. A mãe mandou-a comprar legumes e advertiu que não perdesse o dinheiro como tinha feito da última vez. ´Essa menina parece que vive no mundo da lua!` Ouviu a mãe dizer e apertou as notas. Quando voltava, andando devagar e distraída, pela rua seis, a principal, deixou tudo cair por terra. Na sua frente apareceu um menino que ela conhecia de vista do catecismo. Assustou-se com aquela presença, o menino era um demônio que vivia atormentando as irmãs e as meninas, juntava-se a outros e balançava violentamente a corda do sino que retinia desesperado e sem propósito. As irmãs acudiam apressadas, levantando os longos vestidos e ameaçando chamar o padre. Nada disso assustava aquele moleque que, dependurado na corda, gargalhava fazendo blém…blém…blém… e só corria quando as irmãs já estavam bem próximas.

Pois esse mesmo menino estava ali, na sua frente e, num gesto inesperado, ajudou-a a recolher os legumes. Com a cara rubra, pressentindo o pior, balbuciou, timidamente: ‘obrigada’. Ele riu alto e repetiu a última frase da piada do elefante e da formiguinha: ´Obrigado nada, pode ir descendo a calcinha`. Lídia fugiu apavorada deixando para trás umas batatinhas.

Como foi boba, por um segundo acreditou na pureza daquele gesto, por um segundo aquele menino tinha mudado aos seus olhos, não podia ser o diabo que pintavam. Pode ser… pode ser que, por um segundo, a sua intenção tenha sido a de ajudá-la, mas, no último instante, ao olhar para aquele passarinho frágil não tenha resistido à tentação de dar uma pedrada.

Bruxelas, inverno de 2003.
Beatriz e o arco-íris

‘Beatriz, eu te chamei aqui por que….’ Imaginando o que estava por vir, Beatriz abaixa os olhos, morde os lábios, cora um pouco e emudece, tornando mais difícil o trabalho de Renata. ‘É que as festas de fim de ano já estão começando e….’ Renata engasgava de novo, mexia-se na cadeira, ajeitava o corpo e a barriga grande de oito meses. Estava gorda, por causa da gravidez, talvez, mas não era feia. Nem feia, nem bonita, andava sempre bem penteada e bem vestida. Era ela a dona dessa lojinha de artigos para bebês e crianças onde Beatriz preenchera uma ficha e fôra chamada para o período de experiência. A cada vez que um cliente ou, muito mais provável, uma cliente entrava Beatriz corava e perguntava muito baixo do que ela estava precisando, mostrava o que lhe pediam, mas nunca conseguia insistir ou rir de forma expansiva e jogar conversa fora como as outras vendedoras. Era uma catástrofe! Sabia disso, mas precisava do trabalho.

Aquele não seria um bom dia, teve esse presságio quando se levantou e a mãe, que tinha acordado mal-humorada, disse-lhe que, se quisesse café, deveria ter se levantado mais cedo e preparado ela mesma. Abandonou o café e foi tomar o ônibus pois que chegar atrasada no período de experiência não era, definitivamente, uma boa idéia. Antes das oito, antes de todo mundo chegar, lá estava ela plantada na frente da loja.

Mas não era verdade que o mal humor da mãe dera o tom ao seu dia, vira a mãe se levantar assim ano após ano, dezessete anos para ser mais exata. Evidentemente não se lembrava dos primeiros, mas também deveriam ter sido assim pois se a mãe não tinha paciência com adultos, tinha ainda menos com crianças. Por isso mesmo Beatriz nem se lembrava de quando deixara de ser criança, sinal de que o evento se dera muito cedo pois que tinha boa memória, isso tinha. Lembrava-se até dos sonhos que sonhara lá pelos três ou quatro anos de idade. Sobretudo um sonho vermelho, uma noite de natal suave e terna. Era o único sonho colorido de que se lembrava. Um vermelho forte e um papai noel que não sabia de onde a sua imaginação tinha tirado. Uma coisa era certa, não era a pragmática mãe que tinha alimentado aquela ilusão.

‘Infelizmente você não serve para esse serviço…..’ Beatriz sente uma dor na garganta, engole, a muito custo, a saliva que se acumula na sua boca. ‘…..Você é muito tímida, sinto muito….’Finaliza Renata sem jeito, ao perceber as lágrimas rolando na face angustiada da moça. Ela limpa os olhos e assina, sem ler, os papéis colocados na sua frente, pega o pouco dinheiro que lhe é devido, deixa a loja e vai andando nas ruas. Como é que ia chegar em casa e anunciar para a mãe que estava de novo sem trabalho? Nem completara o mês de experiência, não conseguia ser nem mesmo uma vendedora de artigos para bebês e crianças. E sonhava com tanta coisa!

Entra num bar, pede um café e um pão de queijo, ia tomar o seu café sossegada e só mais tarde ia para casa ou talvez ficasse por aí até dar a hora da aula. Ia ver.

Bem que podia ir na casa do Magno que morava perto dali, mas o Magno era mau pra caramba, ele sofria e queria que todo mundo sofresse igual ou pior. Logo ia perguntar o que ela estava fazendo ali àquela hora, se ela dissesse a verdade ele ia explodir numa gargalhada cínica. Talvez não fosse por pura maldade, mas Magno era assim, pequeno, contrariando o nome. A risada cínica e debochada era a sua defesa contra o mundo que o fizera franzino e sem pai, sem pai e com uma mãe mais rancorosa que uma baleia.

Toma o último gole do café que, felizmente, era forte o bastante, vira os olhos tentando, com o gesto, conter a água salgada que já começava a se acumular ali no canto. Inferno! Já tinha tido a sua quota de patetice do dia. Como podia dois diminutos canais serem tão traiçoeiros? Pisca seguidas vezes, na esperança de enganá-los. Um dia ouviu a história de uma criança que nascera com um dos canais entupidos e então, quando chorava, as lágrimas só saiam de um lado. Será possível isso ou seria conversa pra boi dormir?

Não ia na casa do Maguinho porque, se ele se pusesse a rir, ela ia chorar. No boteco, agora, só estavam ela e o dono, ou empregado, sabe-se lá. E notou que ele a olhava com curiosidade, deve ter percebido aquelas lágrimas querendo saltar. Ia embora antes que ele fizesse alguma pergunta, qualquer pergunta podia ser fatal. Paga e sai, uma vez fora não sabe que rumo tomar, mas se tomar a direita vai passar em frente à loja e isso não quer, toma então a esquerda, caminha até a praça. Se tivesse um bom livro poderia sentar-se ali e passar um tempo. Não podia, na verdade, logo algum conhecido passaria e…não, tudo menos isso. Era um saco essa cidade, grande e pequena ao mesmo tempo. Vê a igreja na frente da praça e percebe que era aquele o refúgio de que precisava. Seria tão bom se Deus existisse, se Ele existisse e que fosse bom, que fosse mais humano, não um Deus que ficava pedindo aos homens para sacrificarem seus filhos, que testava a paciência de um, o amor de outro, como se não tivesse nada mais importante no mundo a fazer. Não, isso não podia ser coisa séria. Se fosse ela ia arder no fogo dos infernos por esses pensamentos. Isso só podia ser uma brincadeira dos homens que a avó tratara de meter na sua cabeça.

Encontra a igreja fresca, limpa e vazia, molha os dedos na água da pia e os esfrega um no outro, senta-se e pensa que podia até deitar-se no banco e descansar um pouco, mas aí logo apareceria alguém para aborrecer, um padre, uma freira ou uma carola. Ajoelha-se como se estivesse rezando, não está, está só escondendo o rosto para chorar melhor e em paz. Então quer dizer que se ela fosse Deus, tivesse ela os Seus poderes, ela seria melhor que Ele? Porque ela nunca deixaria um filho seu morrer à míngua ou nascer sem um braço, sem uma perna ou ficar cego…Tudo isso Ele permite quando poderia evitar com os poderes que tem. E, fosse ela Deus, Eva podia ter comido todas as maçãs do paraíso e muito mais, tudo isso não podia ser sério, mas se fosse ela ia pagar caro. A avó lhe avisara ‘Se não tinha amor a Deus, que tivesse pelo menos temor.’ E temor foi o que sentiu por muito tempo. Agora este temor estava se tornando em raiva. E depois da raiva o que viria?

Limpa o rosto e sai da igreja, quando chega na porta percebe que está chovendo. E se aquilo fosse um dilúvio e a igreja fosse a arca de Noé? Se fosse, ela pularia ou ficaria ali? A chuva durou poucos minutos, teve, então, a idéia de ir à biblioteca. Fazia tanto tempo que não ia lá, um ano, talvez. Lembra de quando teve que ir vários dias seguidos para terminar um livro que não tinha coragem de levar até a bibliotecária e, muito menos, de chegar com ele em casa.

Caminha sob os últimos pingos da chuva, já eram eles tão fraquinhos que ela nem se dava ao trabalho de esconder debaixo das marquises. Era até bom sentir um pouco daquelas gotas. Olha para cima e vê um arco-íris surgindo, conta para ver se ele tem mesmo sete cores.

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imagem: Goldfish, Klimt

Ser

Eu sou. Alardear isso parece sensacionalismo nos nossos dias, mas asseguro-lhes que no meu caso torna-se necessário. Ser não é fácil para ninguém, eu sei, mas quando se é uma atriz, uma farsante, uma profissional que ganha a vida vendendo o corpo, o ser toma outra dimensão e exige cuidados extremos, muita disciplina. Um pequeno lapso e já não sou mais.

Poderia começar por dizer simplesmente que meu nome é Clara, mas isso não alteraria nada e nem é verdade. Então eu digo que sou uma prostituta e vivo na cidade de Londres. Duas coisas importantes e reais.

Tem dias que saio de casa com a bolsa cheia de papéis, entro numa dessas românticas cabines telefônicas e prego ali os anúncios com uma foto que mostra, felizmente, mais as partes irreconhecíveis do meu corpo, pode-se ler também uma pequena descrição dos serviços e um número de telefone. No mais, eu e as outras meninas passamos o nosso tempo a esperar os telefonemas ou a campainha, jogamos conversa fora enquanto isso, tomamos café e rimos. É preciso rir. E, claro, quando a campainha toca é sinal de que teremos trabalho. Então nos alinhamos, trajadas a rigor, cada uma apresenta a sua melhor performance, umas abrem a boca, passam a língua nos lábios vermelhos, outras olham para baixo e fingem-se de tímidas, a idiota da Cindy (idiota até no nome que escolheu) sempre solta um ‘hello!’ que ela pensa que é sensual. Enfim, cada uma faz o que pode para chamar a atenção e, se não fizer, a madame vem aporrinhar e dar lições de procedimento que devem ser evitadas a todo custo porque ela é patética. Aí vem um medo de envelhecer e pensar que pode ser esse mesmo destino que nos espera. Penso nisso e me empenho, melhor ser ridícula agora do que patética mais tarde.

Como percebem, é fácil se perder, um dia eu posso olhar no espelho e pensar que eu sou outra, um dia eu posso acordar com um cliente e imaginar que ele é meu marido, ou, o que seria ainda pior, se um dia eu tiver um marido e acordar acreditando que ele é meu cliente?

Às vezes a gente fica de saco cheio dos homens, por isso beijei uma das meninas na boca. Eu beijei e ela riu. Depois, para mudar de assunto, ela disse que isso de ficar comparando prostituta com atriz era muito banal, todo mundo finge, todos os profissionais fingem, as esposas fingem, os maridos fingem, ninguém suporta ser vinte e quatro horas por dia. Seria uma insensatez. Perguntei-lhe se ela conseguia ser enquanto eu a beijava e ela disse que eu parasse de bobagem, que já estava cansada da minha conversa de doida. Ora, eu que faço tanto esforço para manter o equilíbrio é que sou chamada de doida.

……a campainha está tocando, lá vai a manada para a fila, tenho que ir também ocupar o meu posto. Respirar fundo, sorrir.

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imagem: Water Lilies, Claude Monet.

Airama

“ A mesma paisagem

escuta o canto e assiste

à morte da cigarra”

Matsuo Bashô


Um cão passa na rua. Um pobre cão magro e sem dono. Chamo-o chaninho…chaninho…chaninho…sem atentar que chaninho é chamamento para gato. Ainda assim ele vem. De tão pobre já deve ter perdido a dignidade canina.

Maria não me quer mais. Diz coisas descabidas, cospe no passado, rasga as fotos.

Dou um osso ao cão e ele abana o rabo feliz. Decerto.

Maria, agora, era pura matemática. Cinquenta por cento disso, cinquenta por cento daquilo.

Um dia colhi flores no campo e enfeitei os seus cabelos. Maria sorriu, desfez as malas e coloriu o meu armário.

Maria disse que já era ´Foda-se com as flores.´

Foda-se, tem cabimento? Não respeita mais nada.

O osso é muito pouco para um cão tão faminto, dou-lhe umas salsichas e ele agradece com o rabinho.

Um dia Maria acordou e anunciou que o perfume das flores silvestres não lhe bastava mais. Queria channel n. 5. Eu disse ´Maria, destroem a floresta e os homens da floresta para fabricar cheiro tão desnecessário.` Maria me olhou com raiva e eu ainda tentei ´O pau-rosa, Maria, não haverá mais pau-rosa.` Mas Maria não queria saber de nada.

Maria era só precisão ´Assine aqui, aqui e ali….`vai mostrando as linhas com o seu dedinho fino, era mais linda que uma laranjeira carregada.

Maria venceu na vida. Vejo a distante e artificial. Não se chama mais Maria, chama-se Airama e seu sorriso preenche a tela. Não tivesse ela telefonado para dizer seu novo nome e o horário do programa, eu não a teria reconhecido. Nem a voz era a mesma, nem os gestos, as pausas eram calculadas, os ângulos estudados, as frases bem articuladas e sem sentido. Maria venceu.

O cão ainda está aqui, lavei-o, alimentei-o, ele engordou…Olha para a televisão com a boca aberta e a língua de fora e faz ah! Ah! Maria fala das estradas que galgara para a fama, do casamento com um escritor misantropo, da sua alimentação natural, dá conselhos de beleza….Quanto mais revela, mais esconde. Maria, que era bonita como uma laranjeira. ´Foda-se com as flores.` Disse Maria e bateu a porta. Aqui fiquei com o cão que agora tem um nome, Orfeu. Orfeu faz ah! Ah! E eu passo a mão na sua cabeça. ´Já vamos, Orfeu, já vamos`.

Leila Silva Terlinchamp

07/10/2003 Atlanta


Viagem

Eu olhava, da janela, a paisagem, quadros se faziam e se desfaziam. Um eterno café com pão, há quantas horas estava já eu dentro deste trem? Sebastião dormia, conseguiu dormir. Na minha frente, um moleque branco, de olhos mansos. Tão raquítico e coitado que lhe ofereci um pão de queijo, um dos pães de queijo que a mãe de Sebastião preparara para a nossa viagem. O menino olhou para a cara da mãe esperando o sinal de autorização, balançou a cabeça que sim, obrigado. Um cachorro corria com o trem, língua pra fora, passou por nosso vagão sorrindo. Sorrindo, um cão? A viagem era demorada e cansativa, por que decidimos fazê-la de trem se aqui ninguém mais viaja assim? Idéia de Sebastião. Queria experimentar e agora dormia. Experimentar antes que se acabe definitivamente, disse e contente entrou no trem, muito cedo, eu e ele com os pães de queijo, as mochilas e os olhos cansados, mal dormidos. Tudo era estranho olhado deste trem, o lá de fora e o aqui de dentro, as pessoas e as coisas. Um jeito de passado, Sebastião dormia e perdia. Numa estação paramos, entraram pessoas, ciganos, muitos ciganos barulhentos com crianças, mulheres de muitas saias, dentes de ouro. Um dos ciganos, cara de poucos amigos, carregava um gongo, o gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um pio. Blum, blum. Sebastião acordou assustado, disse quê isso? Nem respondi, o cigano olhou para ele desafiador. Quer pão de queijo, Tião? Perguntei para mudar a rota dos pensamentos. Sebastião não quis. Quer outro? Perguntei ao menino. Não queria, tampouco, o cigano e o seu gongo mudara todo o ritmo. Peguei uma de minhas revistas e folheei, folheei sem vontade, olhei de novo para fora e nada tinha mudado, só o cachorro tinha ficado para trás. Vivia em algum daqueles sítios? Por certo.

No trem, pouca coisa acontecia além do barulho dos ciganos, suas risadas, um ajeitar de lenços na cabeça, só o do gongo continuava quieto, respondia a uma ou outro pergunta dos outros. Seria o chefe? Cigano tem chefe? Sebastião deu uma volta pelo trem, esticou-se, voltou a sentar e logo dormia de novo. Eu na contemplação. Mata, casinhas, cachorros, riachos, montes, crianças abanando as mãozinhas.....mais uma parada. O menino e a mãe ficavam ali, timidamente me disseram adeus. Ele a sorrir, pesaroso. Os ciganos se juntaram no fundo do vagão onde agora havia lugar para todos eles.

Tantas horas já. Tantas horas ainda. Era um viajar monótono, era um pensar. Viajar. Pensar. Revirei minha mochila em busca do livro, Noites do sertão, combinava. Mas eu ia conseguir ler nesse ‘virgem Maria que foi isso maquinista?’ E o trem parou mais uma vez, os ciganos desceram fazendo uma algazarra, como de propósito, o cigano do gongo fez novo barulho. Só eu e Sebastião continuávamos nessa viagem. Isso me deu uma estranha sensação, um medo. Se assim fosse, se não parássemos nunca de passar por esses lugares, nada mudasse, tudo se repetisse ad infinitum, se isso fosse uma condenação? Acordei Sebastião e ele me garantiu que em quarenta minutos, não mais. Jura? Eu não fico mais neste trem, não mais que quarenta minutos. Que bobagem, disse Sebastião e voltou a dormir. Sentou-se, na minha frente, um moleque branco, de olhos mansos. Tão raquítico e coitado que lhe ofereci um pão de queijo. Ele olhou para a mãe.

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Imagem: The long leg, E. Hopper

Beats e Harleys

Mark era um cara estranho. Strange, really strange. Ia rodar os States naquela sua Harley velha, disse. Bye bye baby. Beijou-me os lábios, botou uma jaqueta de couro preta. Dei de ombros, fazer o quê? Só aparecia maluco na minha vida, Mark era mais um. Foi o que pensei. Sei lá, não esquento muito os miolos. Deixo rolar. Rock and roll. Tinha sido bom aquele tempo com Mark, vivíamos tranqüilos num trailer, deixei todo o conforto sem graça lá no Brasil, com minha família besta. Vamos comigo, honey? Disse batendo a mão no banco de sua Harley. Vou esperar por você aqui, baby, neste mesmo trailer, vai, meu Ulisses. Cuidado com as Circes do caminho. Ser Penélope me convinha naquele momento. Jack Kerouac e outros beats amontoados, algumas garrafas de vinho e tempo, muito tempo, tempo para percorrer todas as páginas, para olhar pela janela do trailer o céu mudar de azul para vermelho para amarelo. Dá mesmo para ver o céu desta janelinha? Tecer um tapete com beats. Mark, percorra todas as estradas que puder, sinta, deixe o vento maltratar seu rosto, secar os seus cabelos. Baby, baby, baby eu não te amo, I love you. Mark era um cara estranho, espírito aventureiro, muitos projetos ele tinha e eu o encorajava, encorajava sim. Mark, um café? Um café bem forte, não essa água rala que vocês tomam por aí. Preparei o café com amor e dedicação, Mark tomou duas canecas cheias, sentou-se no sofá, fechou os olhos, deixou passar meia hora. Abriu os olhos, pegou um livro e adiou o projeto de rodar o país na velha Harley. Sempre adiava, era só o efeito passar, era só eu preparar um café amargo. Pegou o meu Kerouac e eu peguei um Burroughs. Aquela Harley há anos não rodava mais, era um enfeite no nosso jardim.

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Imagem: Frutos de la passion, Lola Abellan.

sábado, 28 de junho de 2008

Nervos



Um espirro _

o suficiente para perder de vista

a cotovia

Matsuo Bashô

Súbito uma revolução no céu. Meus carneirinhos foram varridos com fúria e covardia. Contemplava essa transformação quando mamãe chegou e perguntou-me: O que há, meu querido? Nada, estava assistindo à performance das nuvens. Respondi. Esta bela performance está a nos dizer que mais tarde haverá chuva em abundância. Disse ela. A chuva é boa, mãe. Respondi.

O céu é tão imenso e acham de varrer os meus carneirinhos. Esse deus gosta mesmo é de contrariar mortais como eu. Um simples zás e lá se vão os animaizinhos...

Mamãe entregou-me os livros que eu tinha encomendado. Eu mesmo preparei uma lista pois se deixo por sua conta ela banca a censora. Acha que algumas leituras não fazem bem aos meus nervos. Dona Mercedes, dona Mercedes! Ela sim, tem nervos de aço. Quase. Se eu tivesse deixado os títulos ao seu encargo eu não teria o Matsuo Bashô agora em minhas mãos. Não é mesmo, mamãe? digo-lhe e ela sorri. Bashô não faz mal aos nervos de ninguém, Dona Mercedes sabia disso, ela tinha me oferecido, ela mesma, esse livro e agora vinha com essa conversa de nervos. Está pirada, dona Mercedes? Ela ri, me abraça e me assegura que não é bem assim, que essa idéia de censura não tinha partido dela. Ah! Eu devia ter adivinhado, e falando do diabo, lá vem ele caminhando lentamente. Seguro e altivo. Senhor Sérgio Novaes Carvalho Khoury, meu pai. Muito orgulhoso do Khoury que eu também carrego, claro, mas sem a mesma empáfia. Tento esconder o livro sob o banco mas o faço como um criminoso e tão atrapalhadamente que só consigo chamar mais a atenção para o objeto. Como vai, filho? Pergunta ele. Bem, e o senhor? Respondo. Mercedes, o que voce trouxe para ele? Seguiu a lista? Nós conversamos sobre isso, o médico concordou comigo, lembra-se?

Senhor Khoury não se conformava, o seu único varão ali, rodeado de alienados. Quando os clientes perguntavam pelo seu filho respondia que ele estava na Europa, participando de um intercâmbio cultural. E mamãe abaixava os olhos.

Mamãe, você trouxe o caderno que pedi? Perguntei-lhe. Aqui está, um belo caderno, lápis, canetas….Respondeu ela enquanto tirava tudo da bolsa. Para quê isso? Perguntou o velho Sérgio. Vou escrever sobre os meus companheiros de insanidade. Respondi. Que palhaçada é essa? Perguntou ele olhando para mamãe. Palhaçada nenhuma, ele disse aos outros que era escritor e agora eles querem que ele registre as suas histórias. Explicou muito naturalmente mamãe. E desde quando ele é escritor? Perguntou, enfezado, papai. Desde quando ele decidiu assim. Respondeu, sem mudar o tom, Dona Mercedes. Escute, a culpa é toda sua, eu não sei se já te disse isso com todas as letras, mas a culpa é sua. Disse-lhe papai. Sim, você já me disse isso com todas as letras…..

E papai vai embora pisando duro, como sempre.

Quando mamãe se vai, inicio o registro. Zoroastro será o primeiro porque o seu nome começa com Z. Zoroastro que é alto, forte, meio banguela, senta-se no tamborete na minha frente, ergue a cabeça e dita: Era uma vez, uma linda princesa, eu.



Duas meninas


Marina, mas que lugar é esse? Um jardim secreto, Lídia. Não precisa ter medo, é um secreto bom. É só uma brincadeira, brincadeira de duas meninas de treze anos, nem adultas, nem crianças, Lídia. Calma, calma, é aqui, pronto, é só isso, agora deitamos na relva, sim, isto se chama relva, se quiser pode chamar também de grama, mas eu prefiro relva. Eu achei relva uma palavra bonita, vi num poema outro dia, acho que foi naquele livro que você me emprestou. Eu também tenho lido muitos livros Lídia, muitos, mas quantos significa muito? Lídia, seu nome é tão bonito, quem escolheu foi seu pai ou sua mãe. Foi minha mãe. Sua mãe também é linda, Lídia. E você é uma doll, lembra-se o que é doll? É boneca. Isso mesmo. Você não acha que parece uma doll? Não sei. O Rodrigo não disse isso a você, é Rodrigo mesmo o nome dele, não? Deixe de ser boba, Marina. Eu não sou boba, eu vi, ele vive olhando pra você. E daí? Daí nada, ele está apaixonado por você. E você, você está apaixonada por ele? Eu não estou. Mas sabia que ele te olhava, não sabia? Esqueça isso, Marina, eu não quero falar do Rodrigo, está bem? Hum hum, você gostou do jardim secreto? Era da minha avó, ela morreu, coitadinha, agora ninguém cuida dele, enquanto meus tios estiverem se esfaqueando por causa da herança vai ficar assim, abandonado e triste. Nada mais triste que um jardim abandonado. Minha avó era um anjo com muitos defeitos, sabe, Lídia? Você se lembra dela? Eu me lembro, ela era muito chique. Ela me chamava assim: Marina Morena! Porque tem mais Marinas na minha família, sabe? Não é por causa da música? Ah, é, tem a música também. Quando eu era pequena eu não queria que ninguém morresse. E agora você quer? Não, não é isso, quer dizer, se a professora de matemática morresse eu não ia me importar. Será que no ano que vem nós vamos estudar na mesma classe, Marina? Vamos. Como você pode saber? Eu sei sabendo, Lídia, eu repito tanto o seu nome porque o acho lindo, linda Lídia. Viu que eu quase fiz um poema? Você chama a isso de poema? Está bem, era muito pobre, depois vou fazer um pra você, bem bonito.Você faz poemas? Não, mas vou fazer um pra você. Você escreve naquele diário que eu te dei? Sim, toda noite. E essa noite, o que você vai anotar? Ora, ainda não sei. Lídia, eu vou te dar um beijo.

05/06/2005


Leila Silva Terlinchamp
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Publicado na Bestiário Revista de Contos.
Ano 2, nº16 - junho 2005.
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imagem: Flowered-Doorway, Cyrus Afsary
Minas Gerais, Cerrado.
Leila S.
Joseph Conrad Polish-Born Writer in 1922
by Powys Evans

sexta-feira, 27 de junho de 2008

DAMAS

_ A coisa mais engraçada que eu acho, sabe o que é ?

_ Não, o quê?

_ E que todo dia, quando dá uma certa hora a gente muda de posição…

_ Quê? Que conversa de doido é essa?

_ De doido não, tu não me espera terminar…é que quando dá uma certa hora a gente passa da posição vertical para a horizontal, entende?

_ Não, não entendo, mas eu entendo que é a sua vez de jogar.

_ Aí vai…como não entende? Todo dia é assim, para uns é às nove horas, para outros é meia noite, mas todo dia, todo mundo se coloca na posição horizontal, fecha os olhos e se entrega, quer dizer, não sei se é se entregar, mas o sono é um estado estranho…e é esquisito estar na vertical e depois passar para a horizontal…estranho, eu estive pensando.

_ Escuta, pra você estar pensando tanta besteira, eu estou achando que você se coloca na posição horizontal, mas não fecha os olhos…

_ Fecho sim…

_ Pode ser que feche, mas não deve realmente passar para esse outro estado, esse que você chamou de ‘entrega’….Será que você anda com medo?

_ Ih, cara, tu tá entendo tudo errado…Eu tô falando que isso é uma coisa esquisita, que quando chega um período do dia todo mundo muda de posição…Não vai querer bancar o psicólogo agora, vai?

_ Todo mundo não, tem gente que tem insônia.

_ Mas até esses ficam lá na posição horizontal, pegam um livro….

_ Quem te falou isso? Você andou fazendo pesquisa?

_ E, de qualquer modo, eu tô falando no geral, insônia é doença, então não conta.

_ Insônia é doença? Joga cara, presta atenção.

_ Ué, deve ser….Pois então…Ah, aqui, comi a tua dama…eu falo mas presto mais atenção que tu. Então, quando dá lá umas tantas horas, todo mundo muda de posição…

_ Pô cara, vai direto ao assunto, você já repetiu umas dez vezes essa coisa de mudar de posição…

_ Ih, tu tá nervoso porque tá perdendo? Então, seja no Japão, nas Filipinas, nos Estados Unidos…..

_ Ok….ok..

_ Em qualquer lugar do planeta, todo mundo muda…digo, vai dormir..vai pra cama, pra rede, pra esteira…

_ Será que em todo lugar do mundo as pessoas dormem mesmo na horizontal? Ah, você esqueceu de comer aqui, fuuuu, soprei…

_ Bosta! Tu me distraíste de propósito…Eu não vejo melhor posição pra dormir do que na horizontal….que povo seria besta o bastante para pensar em dormir em pé?

_ Ah, sei lá, na Africa, talvez?

_ O que é que tu quer dizer com isso? Isso é racismo.

_ Racismo por que? É que na Africa eles têm uns costumes diferentes…

_ Em todo lugar tem gente que tem costume diferente..

_ Não fui eu que falei que quem dorme em pé é besta, foi você…e agora ainda me acusa de racismo?

_ E seria inteligente dormir em pé?

_ Cavalo dorme em pé.

_ E cavalo é inteligente?

_ ……..

_ Pronto…ganhei.

_Oh, merda.


Bruxelas, 10 de dezembro de 2003.

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imagem: The Sleep of Reason Produces Monsters, from "Los Caprichos", Francisco de Goya

Charles Dickens

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Jacques Prévert em Paris por Robert Doisneau