domingo, 27 de julho de 2008

The artist's garden at Giverny, Claude Monet
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Imprudência

Separei, sempre, o joio do trigo e, muitas vezes, fiquei com o joio. Não foi a sorte ou o azar, foi a imprudência. Eu podia ter escolhido o Luís, mas não, fiquei com o Lazinho. Imprudência! Está vendo minha cara quebrada? Significa que fiquei com o joio, entendeu, doutor? Uma lástima. Claro que não foi a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira. Olha também aqui na minha coxa, viu? Estragar umas coxas dessas, doutor? Modéstia à parte...Um dia o desgraçado quase me arrebentou a cabeça, está aí escrito, dei queixa. A imprudência me fez voltar. Daí, doutor, respondendo à sua pergunta, foram sete facadas de raiva, de dor, de medo. Imprudência pura. Devia ter dado um tiro.

O bife

Natal é sempre a mesma merda, entra ano sai ano, tudo igual. E foi num natal, justamente, que eu abocanhei aquele bife do meu pai. Antes, isso era regalia dele, para nós, só a gordura que sobrava e mamãe misturava numas batatinhas.

Lá se vão tantos anos, mas ainda lembro da cena: meu pai sentado com o prato na mão, preparando para meter os dentes no bife, nós, as crianças, brincando pelo chão e mamãe lavando vasilhas, foi então que o homem entrou, da porta mesmo, sem dizer bom dia, deu os tiros no meu pai que mal teve tempo de se assustar. Eu só tinha uma idéia na cabeça, o bife. Corri, peguei aquele pedaço suculento e comi num piscar de olhos. Os outros choravam apavorados. Só dei por mim depois de ter terminado de engolir. Ainda vi mamãe enxugar as mãos na roupa e sair pelo portão, tomar a rua e caminhar, caminhar, sem olhar para trás, nunca mais voltou. Fomos todos para o orfanato e agora, velha, estou aqui nessa casa de velhos. Hoje me aparece esse aí distribuindo balinhas, rindo e soltando uns ho ho ho fingidos. Quem precisa dele e desses bombons nessa velhice besta?

O que eu queria mesmo era poder comer de novo um bife igual àquele.

Lolita - Capa

domingo, 13 de julho de 2008


Xantipa

Aqui dorme-se bem, o colchão é macio, os lençóis alvos e perfumados. Sim, aqui dorme-se muito bem, não é como no meu pequeno e imundo barraco. Gostei dessa ilha tranqüila e silenciosa, sobretudo agora. Vou partir contrariada, com o coração aos pedaços, diria se fosse um pouco mais dramática. É duro abandonar tanto conforto, mas já é tempo. Amanhã pego o barco e vou por aí, deixo todo mundo aqui que eu estou cansada dessa gente. Obrigada pela cama, pela boa comida, pelos vinhos, pela praia, pelo sol, por tudo….Vou-me. Depois de tantos anos, digo-lhes, finalmente, adeus!


Dona Adélia Campos Guimarães, minha patroa, nem responde, os outros também não. Ninguém mais responde e nem ordena: ‘Xantipa vá buscar isso, por favor.’ ‘Xantipa, nós vamos jogar tênis, prepare um lanche para daqui a duas horas, sim?’ ‘Xantipa, vamos jantar às oito horas, prepare os camarões.’


De manhã lhes sirvo café quente, pães, sucos, limpo a mesa, o chão, troco os lençóis, lavo as toalhas, muitas toalhas que devem estar sempre limpas e cheirosas. Mas tudo isso é pretérito imperfeito, falo no presente por descuido e costume, agora estão todos lá fora, com a boca já cheia de formigas, outros estão ainda na varanda onde lhes servi o camarão bem temperado. Camarão é uma comida estranha e facilmente perecível, eu mesma detesto camarões, sou alérgica, mas eles gostam, digo, gostavam. O Valter não deve ter comido bastante e me deu trabalho. Droga! Esse imbecil bebia tanto que não se importava em comer. Eu devia ter temperado as bebidas também. Da porta vi quando os outros começaram a sentir tonturas, alguns não tiveram a decência de procurar um canto escondido para vomitar e, vendo aquele espetáculo, vomitei também. Não suporto ver gente vomitando, tenho o estômago fraco, ele dá umas reviradas e, como num ato de solidariedade, vomito junto. Valter, que já estava bêbado, não entendia direito aquelas cenas. Alguns correram para o mar procurando, decerto, se refrescar, então, percebendo que não se tratava de uma brincadeira, o beberrão quis entrar para telefonar, eu empurrei a porta e me tranquei aqui dentro. Ele deu murros, pontapés e depois tentou as outras entradas, mas não tinha muita força, desistiu e tentou chegar ao barco, logo o alcancei e dei-lhe uma cacetada na cabeça. Merda, com essa eu não contava, mas tive que fazer, com o barco ele podia, rapidamente, avisar um dos vizinhos. Foi chato isso, pois uma coisa é envenenar comidas, outra é sair distribuindo cacetadas em cabeça de bêbado. Para o envenamento eu tinha me preparado com muita antecedência, tinha estudado e, além disso, era colocar o veneno e esperar agir, já as cacetadas foram todas improvisadas, uma violência. Foi chato, muito chato, mas está feito.


Agora é apagar o que puder dos meus traços, juntar as minhas poucas roupas e desaparecer. Vou amanhã bem cedo antes que os curiosos apareçam por aqui, o telefone tem tocado cada vez mais, os recados preocupados se acumulam na secretária eletrônica. É tempo.


Bruxelas 11/10/2000

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust
1871 - 1922
A vida nem sempre é rosa

Eis-me aqui, dirigindo carrinho de supermercado, e ainda por cima sujo. Ai, Deus! Cinquenta e dois anos, peitos em cima, bunda em cima, umas rugas aqui e ali no rosto, é verdade, sobretudo agora que não tenho mais dinheiro para o botox e para aqueles cremes milagrosos. Milagrosos, desde que se disponha da bufunfa, claro, claro! Disso não disponho mais. Filho de uma puta, me abandonar assim, depois de tantos anos. Dessa vida nova, uma das coisas que mais detesto é ter que vir a supermercado, ainda mais esse aqui cheio de pobre, ó desgraça, olha aquela ali com salto de um metro às três da tarde...e saia curta! Tenha dó, que falta de classe. É o que chamo de falta de classe, estampar assim a piranhice. Cruzes! Olhe bem as palavras que você anda usando, Leda. Deus-me-livre, não é porque você agora é pobre que tem que vir com essas. Mas, enfim, infelizmente aquilo ali não tem outro nome, é piranhice mesmo, e das boas, essas sandálias baratas, tá na cara que são baratas, feias e altas combinadas com mini-saia. Enfim, o que não deve ser barato nesse supermercado? Ai, coitada, dignas de pena essas moçoilas de ar idiota. Olha só como anda! Dá até vontade de ir lá explicar “Querida, se você não sabe andar com esses saltos, coloque uns mais baixos, você pensa que aquela modelo que você vê na revista sai por aí a fazer compras de salto? Não, não, a elegância consiste em saber a hora disso e daquilo.” Mas quem sou eu para dar conselhos, cinquenta e dois anos de elegância e aqui, largada com uma mesada ridícula. Isso é outra coisa que não entendo, essa mudança dos tempos, antigamente eu via as mulheres se separarem felizes, com uma bela duma pensão, indo curtir a vida numa boa com os namorados....Agora, quando é a minha vez, me sobra essa mixaria. Sinceramente, os tais mistérios! Bom, o mistério maior é que aquele salafrário conseguiu esconder boa parte do dinheiro dele e o juiz preferiu acreditar. Homens! Mas que merda, não acho nada nesse supermercado. E o pior de tudo, o pior, não fui trocada por uma dessas beldades de vinte ou trinta anos, não, nem fui trocada, simplesmente isso, cansou-se de mim, cansou-se, que eu não levasse a mal. Não disse isso nessas palavras, classe é algo que Frederico tinha de sobra, tinha não, tem né, ele não morreu. Agora sei que está tranquilo e calmo percorrendo a Europa com um amigo, inclusive as más línguas dizem....Eu não quero nem saber, estou fora desse jogo mesmo.

Outro mistério desse universo pobre: porque razão alguns têm que vir ao supermercado com toda a prole? Juntam os pirralhos todos e trazem ao supermercado como se aqui fosse parque de diversões. Ai, que saudade da Dona Zuleica viu, com ela eu não precisava nem me lembrar que supermercado existia, escolhia tudo do bom e do melhor, um verdadeiro chefe. Claro, ela está lá com o Frederico, óbvio, primeiro porque nunca gostou mesmo de mim, me tolerava, isso sim e quando eu viajava, eu bem sei, o Frederico podia transformar a casa em clube gls. Sim, no fundo as más línguas têm razão, eu nunca quis dar ouvidos antes porque me convinha, afinal que marido empurra a esposa para férias de um mês, dois meses até, na Europa sem nem perguntar com quem está indo? Pois é, agora aqui estou dirigindo esse carrinho de supermercado. Que merda! Amantes eu tive de sobra, hoje, quando pego a agenda e ouso telefonar para algum deles, só escuto desculpas das mais esfarrapadas, cada um mais ocupado que o outro, viraram homens de negócio, artistas.....o caramba, até parece! É como se eu tivesse uma doença contagiosa. E tenho mesmo, essa doença se chama pobreza, foram-se as viagens, os bons restaurantes. Frederico-filho-da-puta! Quem diria que aquele homem tranqüilo, elegante e bonito podia puxar assim o meu tapete. O juiz diz que o apartamento, o carro e a mesada que ele me deixou são suficientes. Suficientes, senhor juiz? Eu queria ver se o senhor fosse uma mulher de cinquenta anos, aí a gente podia conversar de igual pra igual. Agora uma coisa eu juro, nesse supermercado chinfrim eu não piso nunca mais, nem que eu tenha que começar a vender minhas jóias. Tudo tem limite nessa vida. Ai, Zuleica, traidora! Sim, fique aí com o seu Frederico, o galante, eu, a fútil me cuido só. Ah, não, nessa fila eu não entro, basta, chega dessas economias estúpidas, não quero saber de futuro, vou arrumar uma Zuleica pra mim.

Junho 2005

Não creio em bruxas, mas...

Lorena, com seu rosto de uma brancura alabastrina, nariz minúsculo e olhos que lembravam dois lagos plácidos comoveu-me à primeira mirada. Sou do tempo em que, para se descrever uma mulher, não temíamos os clichês. Casamo-nos depois de muito verbo, muitos presentes, muita amolação dos meus filhos que não queriam ver a herança escorrendo para mãos alheias. Um dia chego em casa ansioso por beijar minha doce Lorena e a encontro com Letícia, bebendo e rindo. ‘Minha melhor amiga’, disse ao apresentá-la. Semanas seguidas, ao chegar, tinha que fazer face àquela irritante presença. Insisti com Lorena para que fizéssemos uma viagem, ela recusou, não só recusou como explicou que ela e Letícia iam viajar juntas para uma convenção de bruxas, sim, que eu acreditasse, eram bruxas, eu podia esquecer tudo aquilo que conhecia sobre velhas de dentes pretos e nariz cheio de verrugas. Fez até uns truquezinhos para provar. Esperneei, aquilo já era abuso, ela ameaçou anular o casamento e eu cedi porque, apesar de todas as estranhezas, não queria arriscar-me a perdê-la. Por mais de um mês estiveram a viajar, meus filhos aproveitaram o tempo para aporrinhar-me, tratando-me como um velho gagá que tinha abandonado por completo o bom senso. Mas não era o meu senso que os preocupava.

Chegaram as bruxas, sim, chegaram, no plural. Encontrei-as dormindo na sala, livros jogados aqui e ali. ‘E então?’ Resmunguei alto com o claro intuito de acordá-las. Abriram os olhos se espreguiçando como duas gatas, disseram que estavam estudando bruxarias e caíram no sono....Olhei para as capas: Anaïs Nin, Virginia Woolf? Nunca me ocorreu que tivessem sido bruxas. Riram a mais não poder da minha observação e nem se deram o trabalho de explicar a bizarrice. Maldito o dia em que sucumbi, em que olhei para aqueles olhos, estava mesmo senil. Suspirei desanimado e sentei-me no sofá na frente delas. Comovidas pela minha resignação, vieram as duas, sentaram-se cada uma de um lado, passaram as mãos na minha cabeça e perguntaram, com uma doçura que me espantou, se eu estava bem e se desculparam pela risada sem propósito. Vocês são mesmo bruxas? Perguntei. Somos umas bruxinhas amadoras. Foi Letícia que respondeu, com uma voz brincalhona. Olhei para ela e só então percebi como era bonito o seu sorriso. Você vai morar aqui, Letícia? É um convite? Foi sua resposta. Era certo que eu estava perdendo a cabeça. Correu para a cozinha dizendo que ia preparar um banquete para comemorarmos, e preparou mesmo, fazia tempo que eu não comia e bebia tão bem. Preparam ainda meu banho, minha cama, contaram-me histórias até eu dormir, mas, quando acordei, não era em minha cama que Lorena estava. Levantei cedo e lá vieram as duas dar-me bom dia com beijinhos de filhas comportadas, agradecendo por eu ter ‘deixado’ Letícia morar conosco.

Agora nossos dias correm tranqüilos, adequei-me a esse estilo. É faltar uma delas em casa e já fico confuso.

Bruxas? Não acredito.

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imagem: Enigmatique, Keith Mallet

terça-feira, 8 de julho de 2008

Saint-Exupery
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terça-feira, 1 de julho de 2008

Minas Gerais - Sítio