domingo, 24 de agosto de 2008

Mosaico de horas

Eu e essa estrada, faz anos que é assim, tantos que ela já é quase uma pessoa. Uma pessoa, é isso, a gente vai rodando... rodando.... nessa solidão e começa a racionar besteiras, uma estrada vira uma pessoa, já se ouviu de tudo, quer dizer, na verdade ninguém ouviu porque estou matutando sozinho. Mas, se tivesse alguém aqui eu ia mostrar o tanto que conheço bem esse caminho, daqui a uns quinze ou vinte minutos vou passar por aquela árvore grande pendendo pra esquerda, uma de galhos engraçados, parece que quer abraçar, vamos ver, vou marcar no relógio, tivesse alguém aqui ia ver como estou certo. Bom, ia ver ia ver e de quê isso ia servir? De nada. Uma inutilidade saber que em tal lugar dessa estrada tem isso ou aquilo. Algumas vezes necessitamos também dessas coisinhas inúteis, essa que é a verdade, ajuda ao menos a pontuar minha solidão. É que tenho que manter a cabeça ocupada, essa vida de estrada é muito das esquisitas se a gente analisar, estrada, estrada e mais estrada, ninguém imagina o que é isso, nem eu imaginava que um dia ia ser assim, que a solidão pudesse ser tão vasta, que ia ter que treinar a minha própria cabeça para não ficar doido, vou pensando numas coisas e tentando não pensar noutras, às vezes pulo sem mais nem menos de um assunto pra outro, mudo completamente de rumo, de propósito. Lá está a tal da árvore, vamos ver, dezessete minutos contados, nem quinze, nem vinte, mas dezessete que está no meio. Olha lá, dá até vontade de abanar a mão pra ela. Veja o que a solidão faz com um homem, estrada vira gente, árvore vira gente...Um dia escutei no rádio uma história estranha, era sobre as sereias, essas também foram uma invenção da solidão do homem. Ficavam os marinheiros a marear por longos meses, anos, quem sabe, naquela solidão absoluta, quer dizer, só não era mais absoluta que a minha nesse caminhão porque lá eles tinham outros homens pra conversar, mas sempre os mesmos...não sei, em todo caso, mulher é que não viam, daí a imaginação desses coitados transformou um peixe - um peixe que consegue sair da água por uns instantes – na mais bela criatura fêmea que havia, fêmea, mas não mulher, ou mulher só pela metade. Solidão é isso, invenção. Estrada, minha estrada, até quando seremos nós dois?

De noite leio umas pagininhas do bang-bang, escuto as notícias no rádio e durmo, umas vezes o sono vem rápido, outras demora, quando demora é o diabo, esticar essa solidão diurna é pagar os pecados que a gente nem tem tempo de cometer. Na manhã seguinte, a estrada está lá esperando a minha marca, é quase infinitamente assim, um dia não há de ser mais porque até o que parece infinito tem que ter um fim. É.

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imagem:Ichi en so, shingai Tanaka

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Les escaliers du Montmartre, Paris.
Brassai

Óleo sobre tela

....e como era aquele tempo em que as pessoas não tinham fotos amareladas para ver ? aquela chinesa ali, tão grávida, que parou para descansar [o marido americano segura a bolsa enquanto isso. bolsa de mulher] tem em casa uma foto antiga da mãe na China. da sua boca sairá uma filha que ela quererá perfeita e, quem sabe, cristã. mas aquele outro casal que passa, ele chinês, ela chinesa, observa sem pudor aquela que ali descansa o seu ventre já quase maduro e o marido que segura ternamente a bolsa feminina. A bolsa outra, dia desses, rebentará e uma menina muito linda e mista verá a luz. mas o olhar do outro casal lançou uma sombra na boca da grávida. a boca mensageira, corrosiva ou libertária, a boca que recriará uma avó chinesa, uma língua chinesa e os parques da China tão mais vastos e verdes que este americano e plástico. a graça imperfeita da China parecerá tão distante e a foto da avó desdentada e camponesa será uma irrealidade. a mãe entoará berceuses em chinês. deve existir berceuses em chinês. sim.

15/08/2004