sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O mundo de Suelen

Suzi, só de olhar já mete medo nas pessoas, uns olhos estranhos, esgueirados, parece o próprio diabo. Se for preciso, sabe se fazer de boazinha também. Está lá no quarto costurando, cuidadosamente, minhas lingeries, boa que só ela. Minha mãe, mãe mesmo, era uma louca que andava pelas ruas levantando as roupas, se exibindo, essa me pôs no mundo e a dos olhos estranhos me criou e me chamou Suelen. Como passei dos braços caprichosos de uma para os da outra, não sei, só sei que aqui estou. Juro que ela tem olhos de bruxa, um dia lhe disse isso e levei um baita tapa na cara. Devo ter merecido, afinal de contas ela me deu um teto e alguma orientação. Preparou para mim uma festa de quinze anos, vestido novo, sapatos novos, cabeleireiro e fotos. Foi há dois anos, um sonho. Talvez, bruxa mesmo seja essa vida de merda, esse lugar onde eu fui cair ou pode ser que eu seja louca como minha mãe verdadeira. É difícil saber todas as coisas e fico arrependida de pintar esse retrato de Suzi. Mas é que às vezes ela exagera. Não na coisa em si, mas no jeito de jogar as cartas. Está certo, sou meio namoradeira, mas dizer assim na bucha: ‘olha é o seguinte, você anda por aí dando de graça mesmo, agora vai ser assim, você vai cobrar pelos serviços.’ Escondi pra chorar. Podia, pelo menos, ter usado um palavreado menos dolorido. Às vezes penso até que nesses anos ela foi preparando tudo no seu caldeirão mental, colocando as ervas, imaginando, preparando meu corpo. Tanto é que implicou quando comecei a engordar e me mandou para o médico que me encheu de comprimidos até eu perder dez quilos. Aqui estou, esbelta, com longos cabelos negros que ela insiste em mudar para loiro. O passo seguinte é entregar-me para o velho, o Jorge, dele tenho que arrancar dinheiro suficiente para nós duas irmos para o estrangeiro, lá sim, se ganha dinheiro, pelo menos é o que ela pensa e já tem tudo planejado para mim e para ela. Arrancar dinheiro desse velho babão não vai ser muito difícil, faz alguns meses que ele vem me mandando presentes, Suzi se faz de cega, surda e muda, mas planejou cada detalhe, desde o início, a rua onde eu tinha que desfilar na frente dele, os horários que deixava o consultório, tudo. Ela sabe das coisas. Até consulta pagou pra mim. Cardiologista, tive que fingir uma disritmia e inventar um passado cardíaco para a família. Quer dizer, inventei tanto os corações quanto a família já que a única coisa certa é essa mãe louca. Afinal, quem pensa no coração aos dezessete anos? Eu não pensava. De qualquer modo o cérebro do velho está travado, nem imagina que pode ter uma suzi por trás disso.

Melhor destino para mim não há, já decidiu. Deve ser assim mesmo, não acredito em príncipes encantados, encantado é aquele que pagar mais, mas ficava com uma certa vergonha de me arrumar, entrar numa mini-saia e sair de manhã com o único propósito de me exibir por onde ele passava tomando cuidado para que tudo parecesse coincidência. Quem sabe eu não devia tentar ser atriz? Já fiquei meio treinada depois dessa encenação. E como é que pode ter homem estúpido a esse ponto? Decerto que o fundo não presta mesmo, tem aquela cara séria, foto da mulher e dos filhos na mesa do consultório, mas quê, puro enfeite. No meu retorno ele já estava meio atrapalhado com o porta retrato, virando ele para a parede enquanto me mostrava um coração de plástico e explicava as suas baboseiras. Eu não vi nada disso, foi mamãe que observou e falou, pode ser também a imaginação dela, isso sobra lá naquela cachola. O importante é que no final tudo deu certo, como planejado. Outro dia ela disse que cada um nasce para uma coisa e eu nasci pra puta, tenho que ficar satisfeita e erguer as mãos para o céu – para o céu, imagine! – porque tenho um bom corpo e um sorriso convincente, levo jeito. A vida é estranha e cheia de surpresas, no meu caso são tantas que nem perco mais tempo me surpreendendo.

Agora marcou no calendário o tempo que eu tenho para conseguir o dinheiro dos bilhetes, não é muito, mas prefiro assim, não suportaria aquele cheiro de velho por muitos meses.


terça-feira, 25 de novembro de 2008

Ernest Miller Hemingway

domingo, 23 de novembro de 2008

In pace requiescat!

A preparação da mesa durara quase uma hora. É muito tempo, mas foi bem executada, nada fora do lugar, talheres brilhando e milimetricamente dispostos. Eu estava contente com Stephen. Bastava respeitar o seu tempo, todo mundo tem seu tempo, é natural que Stephen tenha o dele. Infelizmente Alice não pensava assim e vivia a reclamar e a sacudir o relógio. Não apreciava nada. Veja este quadro, Alice – disse, tentando chamar sua atenção para algo que não fosse espelho ou relógio. Eu já disse que não vejo nada neste quadro, é horrível, por mim já teríamos trocado isso. Sim, e teríamos colocado mais uma foto dela no lugar, decerto.

Minha devota esposa, todo domingo estava na igreja, primeira fila, cada semana com um vestido novo. O padre não sabia da missa um terço, eu conhecia. Um dia saiu da igreja de olhos inchados, disse que a confissão a fizera chorar. Duvido que de sua boquinha vermelha tenha saído a coleção de chifres com que me presenteou durante o nosso cruzeiro. Não, o padre só ouvia os pecadilhos de moça, ou melhor, da jovem Alice que sofria nas mãos de um marido caprichoso. Eu podia até ver os seus beicinhos tremendo na frente do padreco.

Não suporto esse Stephen, é muito estranho, você devia substituí-lo. Essa era a última da minha Alice, não parava de me encher. Substituir Stephen? Never ever, eu sempre quis um mordomo inglês. Nem inglês ele é, é irlandês. Respondeu a atrevida. Fulminei por dentro, mas por fora parecia um mestre zen. Ele tem um ar sorumbático. Sorumbático? Gargalhei. Minha querida agora anda lendo dicionários ou está aperfeiçoando com o padreco? Saiu batendo os saltos na madeira do assoalho e fingindo indignação. Na semana passada tinha me chamado de mentiroso por conta do quadro que ela quer substituir, eu disse que ele pertencia à minha família há muitas gerações, que tinha vindo num navio, quando minha avó decidira se aventurar por essas terras. Que exagero, disse ela, você vive exagerando essas histórias de família. Eu respondi, Alice, eu já te disse que não sou mitômano. Os olhos rebocados se arregalaram. Eu tinha me esquecido com quem estava falando. Não estou exagerando, Alice, não é mentira, esse quadro é importante para a família, mas acho que é muito difícil fazer você entender isso.

Pedi a Stephen que trouxesse meu casaco, eu ia sair. Stephen, terminou a leitura de The Cask of Amontillado? Perguntei enquanto me vestia. Sim, senhor – disse Stephen. Entendeu tudo? Preparou a adega? Entendi sim, senhor. Sempre gostei de Poe. Sim, Poe é excelente leitura. Muito instrutivo. Então eu já vou, Stephen, será hoje, não perca tempo.

De manhã meu café estava servido do mesmo jeito de sempre. Mesa posta para uma pessoa.

Bom dia, Stephen? Correu tudo como previsto? In pace requiescat! Respondeu. Eu vou sair e vou organizar a viagem, vamos passar uns meses na Europa. Antes vou verificar a parede da adega. Não precisa, Sir. Ficou perfeito, eu lhe garanto. Ninguém saberá que existe outro cômodo depois dela. Respondeu, seguro, Stephen. Precisamos de umas férias, Stephen. Disse-lhe e ele respondeu, sem se mover, yes, Sir, com efeito, preciso mesmo rever os verdes campos da Irlanda.

Leila S.

domingo, 2 de novembro de 2008

Pássaro rebelde

É certo, l’amour est un oiseau rebelle, eu entendo mas, por mais rebelde que seja essa pôrra desse pássaro, isso não se justifica. Ele a emprenhou quinze, quinze não, dezesseis vezes. Dezesseis sim, tem sentido isso? Você só sabe de quatorze porque dois morreram, já nem sei como. Quatorze! Sete? Sete filhos tanta gente tem, não é mesmo? Quatorze, sete homens, sete mulheres! Parece conta feita. Então era assim, o bonitão desaparecia por uns tempos, vinha e bimba, um filho, sumia por mais um tempo, voltava e a mãe lá firme, com o barrigão firme. Lá vinha mais um para viver a pobreza escolhida pela minha mãe. Foi por conta desse amor aí, este oiseau rebelle?Ah, o cacete! O bonitão é meu pai, claro.

Um dia, quando eu era moleque, a professora mandou a gente ler um tal de Éramos seis e veio perguntar, justo pra mim “Eduardo, o que foi que você achou do livro?” “Não achei nada, professora.” Respondi. “Como assim, nada? Você leu o livro?” “Eu li, professora, mas não vi graça na choradeira porque, se a senhora quiser saber mesmo, lá em casa somos Quatorze.” Pra bom entendedor um pingo é letra, a professora não me encheu mais o saco, viu que precisa mais do que seis pra me impressionar….mas bom, felizmente isso já vai longe. Sobrevivi, agora, passeando meus olhos pelas estantes da biblioteca vejo o tal livro e aqueles dias são revividos. Foi isso o que aconteceu, com Proust era a Madeleine.